O caminho da esquerda

Por Marcelo Freixo.

Para pensarmos o significado de 2016 e o futuro da esquerda, sugiro começarmos pela reflexão sobre a relação sempre tensa no Brasil entre legalidade e legitimidade.

Recorramos ao golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff como primeiro exemplo. A todo tempo buscou-se dar um ar de legalidade a uma ação claramente ilegítima. Houve um rito, previsto pela legislação, que envolveu o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

O cuidado com a forma foi o argumento para sustentar um golpe que, apesar da roupagem, peca em sua essência: não houve crime de responsabilidade cometido por Dilma.

A tensão entre legalidade e legitimidade não se restringiu à esfera política em 2016. O aprofundamento da crise de segurança no Rio de Janeiro, não desvinculada do colapso ético, político e econômico estadual e nacional, serve para compreender essa relação.

A grande e lamentável quantidade de policiais mortos constantemente legitima as ações ilegais, como execuções praticadas pelo Estado em áreas pobres na capital fluminense e em todas as grandes cidades brasileiras.

A ilegalidade da barbárie legitima-se sob os desejos de vingança que não se resumem ao policial que aperta o gatilho, mas dizem respeito a toda a sociedade. Nesse sentido, é pedagógico ver como os meios de comunicação sempre buscam confirmar repetidamente os antecedentes criminais de vítimas de execuções sumárias. 

 Foi o que ocorreu após a queda de um helicóptero da Polícia Militar na Avenida Ayrton Senna, em Jacarepaguá, zona oeste, durante uma operação das forças de segurança na Cidade de Deus. A morte lamentável de quatro policiais foi utilizada para justificar, ou ao menos tornar menos grave, o assassinato de sete cidadãos numa área de mata na comunidade.

Esse episódio impõe à esquerda, que se identifica e é identificada com a luta em defesa dos Direitos Humanos, uma série de reflexões.

Uma delas: como inverter a lógica que transforma uma ação ilegal e violenta em algo legítimo, inclusive para quem potencialmente pode ser vítima das mesmas violações? Esse é um debate de hegemonia.

Uma das conclusões, principalmente após as derrotas sofridas neste ano, é sobre a necessidade de se retomar e revalorizar o papel do trabalho de base em todas as esferas da militância política, partidária ou não.

Não podemos deixar para nos preocupar com isso em 2018. Não seria nem inteligente do ponto de vista da disputa política nem justo com aqueles que sofrem cotidianamente tantas injustiças na pele.

A esquerda, em consequência de sua história, aprendeu muito bem a resistir a cenários adversos. Esse esforço foi fundamental para a sua sobrevivência, mas deixou de ser suficiente.

O desafio não é somente resistir a um governo golpista e sua agenda de eliminação de direitos que provocará graves prejuízos aos trabalhadores. Precisamos saber reexistir, reinventar a nossa existência e dar um novo sentido ao nosso papel e às nossas práticas, principalmente em relação àqueles que pensam diferente de nós. Eis a importância do trabalho de base.

Um dos grandes equívocos de uma parte do PT foi, em meio à crise sobre a qual tem responsabilidade, não ter feito a autocrítica necessária. Em vez de reconhecer os erros e buscar o diálogo com a população de forma aberta e generosa, preferiu tratar seus críticos como uma coisa só, como se todos, sem exceção, não passassem de antipetistas raivosos e integrantes da elite recalcada.

O mesmo equívoco é repetido quando partidos, movimentos sociais e cidadãos identificados com a defesa dos Direitos Humanos abrem mão do diálogo, de ouvir os desconfiados e de ter disposição para explicar, de forma pedagógica, a importância de lutar pela dignidade humana.

A negação desse exercício é fundamental para entendermos o motivo de tantas vítimas de violações legitimarem ações e princípios que as oprimem, como ocorreu na Cidade de Deus.

Quando afirmo a centralidade do trabalho de base para uma nova política de esquerda, incluo a necessidade de reflexão sobre o que foi feito desde a eleição de Lula, em 2002.

Apesar de avanços na política de valorização do salário mínimo, na expansão e democratização do ensino superior e na retirada de milhões de brasileiros da extrema pobreza, a era petista foi marcada por um tripé de governabilidade que incluiu empreiteiras, partidos conservadores e fisiológicos e meios de comunicação.

Alguns podem estranhar o terceiro pilar, devido à campanha em favor do impeachment feita pelos principais veículos do País. Explico: o grande pacto bancado pelo governo com amplos setores econômicos, políticos e sociais impunha limites no projeto de transformação que o PT alimentou ao longo de sua história.

Um desses limites é revelado pela omissão do governo em nem sequer margear o debate sobre as ilegalidades do sistema de comunicação, com o objetivo de não desagradar aos grandes grupos de mídia.

Quando se fala em reforma dos meios de comunicação, não se trata de cercear a liberdade de expressão de quem discorda de qualquer governo, mas simplesmente de cumprir o que prevê a Constituição e contrariar interesses políticos e empresariais.

A situação da comunicação reflete como os consensos foram construídos no andar de cima. A forma como a governabilidade foi garantida pelos acordões provocou consequências nas relações com o andar de baixo. A lógica não foi de diálogo e de construção de consensos por meio do debate de ideias, mas de cooptação para um projeto definido.

Rio de Janeiro
O Brasil legitima a violência (Fabio Motta/Estadão Conteúdo)

Essa maneira de se relacionar com os movimentos sociais é central para entendermos o esvaziamento do trabalho de base, a despolitização moralizante e o avanço da direita nas pautas cujos sentidos a esquerda abriu mão de disputar. O esforço de ouvir mais do que falar, de reconhecer a importância de dialogar de forma generosa com quem pensa diferente, de tentar convencer sem colonizar, foi relegado.

Diante disso, a esquerda que resistiu e agora precisa reexistir (não me refiro somente aos partidos) precisa equilibrar novamente essa correlação de forças, ir além dos convertidos e reconhecer a urgência de ampliar o debate sobre Direitos Humanos.

Sim, Direitos Humanos. Não só na esfera tradicional da segurança pública, mas em suas relações com questões religiosas, de moradia, de acesso à saúde e educação públicas de qualidade, ao direito de ser ouvido e participar das decisões de interesse público. 

As eleições municipais no Rio são um bom exemplo para pensarmos sobre os desafios presentes e futuros. A maioria esmagadora dos evangélicos, para além de quem frequenta a Igreja Universal, votou em Marcelo Crivella.

Em vez de criticar esses eleitores, como parte da esquerda costuma fazer, é necessário analisar por que não conseguimos dialogar com esse segmento, formado majoritariamente por uma população pobre, excluída e vítima de graves violações de Direitos Humanos. 

A resposta não é fácil, mas comecemos por admitir que os erros são nossos, sejam eles fruto do preconceito, da arrogância ou da omissão. Se não fizermos essa autocrítica, teremos de aceitar que evangélicos votem sempre em candidatos de direita.

A esquerda precisa questionar-se sobre como construir consensos numa diversidade tão grande de movimentos fragmentados – movimento negro, de mulheres, de favela, LGBT. Como se aproximar e se unificar numa luta comum sem perder a identidade?

O caminho para responder a essa pergunta, creio, é encarar a agenda dos Direitos Humanos como o novo paradigma da luta de classes, compreendida na relação capital e trabalho, mas para além da porta da fábrica.

O que une todos esses movimentos citados anteriormente é que eles precisam incorporar algo que lhes é comum: uma concepção de classe social. Os brasileiros têm seus direitos ameaçados e violados enquanto mulheres, negros, homossexuais, mas também enquanto trabalhadores pobres.

O reconhecimento desse vínculo é etapa crucial para o desenvolvimento de uma agenda de transformação que dialogue e faça sentido para a realidade vivida pelos trabalhadores que, não necessariamente, estão engajados nos espaços de militância política e muitas vezes se identificam ideologicamente com a direita conservadora.

Só assim conseguiremos convencê-los de que as bandeiras dos Direitos Humanos não os ameaçam e de que podemos ajudá-los a melhorar suas vidas.

Nas eleições para prefeitura do Rio, fizemos um grande esforço para construir uma nova forma de fazer política, baseada no diálogo e no pertencimento. Nosso programa contou com a participação de mais de 5 mil colaboradores de todas as regiões da cidade. A campanha foi coletiva e financiada por mais de 14 mil doadores. Batemos recorde nacional ao arrecadar 1,8 milhão de reais pela internet.

Mesmo sem estrutura, conseguimos derrotar o PMDB e chegar ao segundo turno. Isso mostra a existência de caminhos para reexistir e transformar as práticas políticas no nosso País. Precisamos de mais.

Fonte: Carta Capital

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