Recife (PE) – A Comissão de Anistia teve esta semana uma sessão histórica, daquelas que fazem a gente dizer “um anúncio distante de justiça se faz na terra”. Na terça-feira, quando se negou qualquer reparação para o cabo Anselmo, os crimes do agente infiltrado voltaram à tona, e com eles também voltou o nosso livro “Soledad no Recife”, publicado pela Boitempo. Divulgo aqui uma página do livro, escrito sob uma pesquisa histórica, documental, de tal modo que difícil nele é separar o factual da imaginação literária. A página a seguir fala do horror e da surpresa de Soledad, ao descobrir entre os policiais a cara do marido, o agente duplo a quem amava:
“A cara de Anselmo, no conjunto dos sinais, Soledad não via. Não tanto porque a desconfiança nunca lhe houvesse batido à percepção. Mas porque isso era tão horrível, que o seu senso estético repugnava. Uma coisa que o seu peito de justiça não queria nem podia aceitar. E recuava, no mesmo passo em que os indícios cresciam. Mas o Cartório de Registro dos Sonhos existe, ainda que fora do domínio civil de uma cidade. Ele existe ao lado dos lugares onde se bebe, come-se e se morre. Os seus documentos, se não têm efeitos legais, recuperam no real os direitos. Os sonhos, quando muito fortes, os pesadelos, quando inescapáveis, tornam-se tangíveis. Houve então um momento em Soledad, houve um espaço e lugar nas suas antevisões, em que se passou do antes para o agora, sem mediação para o horror que jamais havia se apresentado com a sua cara. Nas representações anteriores, nos indícios, não se mostrava assim tão claro.
– Por quê? Por quê?!
A pergunta que Soledad não se fizera diante das imagens que a perseguiam nos últimos meses, por quê?, qual a razão delas, agora à luz do dia em Boa Viagem, em uma butique da ensolarada praia de Boa Viagem, aonde ela foi para vender roupas, onde ela está com Pauline, ali, sob a prazenteira luz física do Brasil, a pergunta pelas razões dos sonhos e pesadelos que ela não se fizera, agora vêm com um susto, um terror, diante do real bruto. José Anselmo dos Santos se encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e punhos.
– Por quê? Por quê?
Pauline está muda e petrificada, incapaz de correr e falar. Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem
– Você dorme bem?
– Putz, tranquilamente.
Ou mais textualmente:
– Você dorme tranquilo? Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?
– Absolutamente (risos)….
Por enquanto, não, agora na butique em Boa Viagem ele não ri, embora a cena lhe pareça um tanto cômica.
– Por quê? Por quê?
Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas.
‘Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério…. em um barril estava Soledad Barret Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto’.
Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou entre lágrimas, com a pressão sangüínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: ‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror’.
No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e confraterniza com pessoas. ‘Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela’. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-a pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad. Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres – despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. ‘A boca de Soledad estava entreaberta’ “.