O nosso país é grande. O nosso país é rico. O nosso país é capaz de produzir alimentos e energia, e facilmente prover muito mais do que a nossa população precisa para continuar crescendo com qualidade de vida, em todos os rincões dentro de nossas fronteiras.
Mas nosso país, como aliás acontece em quase todos os lugares do mundo, desde sempre é oficiosamente a propriedade particular de um número reduzido de pessoas e entidades com mais ou menos visibilidade, que na prática, tornam as distorções sociais rotina, e para além disso, melancolicamente normais.
Todos os dias milhões de nós acordamos para a jornada de labuta como deve ser. Preparamos-nos para encontrar com os nossos afazeres, como deve ser. Trabalhamos duro nestes afazeres, como deve ser. Cansados, no final dessa jornada, retornamos às nossas casas a seguir com as nossas rotinas privadas, como também deve ser. Mas não conseguimos conciliar muito resultado prático desta labuta ao ligar a tv ou abrir um jornal.
O que nos aguarda no noticiário, não direi ser completo equívoco, mas uma visão limitada da realidade. A começar pela falácia de que apenas em alguns lugares privilegiados, exista um brazil muito mais importante que o Brasil.
Não raro, a opinião de algum especialista do plantel de especialistas, toma muito mais tempo de um jornal do que o fato que esta opinião pretende explicar.
É como se um artista estivesse a pintar em tela, a partir de uma fotografia, e os dois serem mostrados com muito mais ênfase para a pintura que para o original fotografado logo ali do lado.
Este não é um exercício fácil, requer muita técnica para distorcer números e fatos a plena vista, ao vivo e em cores.
Vi isso acontecer recentemente, quando dois dos índices que na mesma ótica de alguns importantes formadores de opinião, seriam os mais emblemáticos freios ao crescimento do Brasil. Sendo parte da razão pela qual jamais seríamos um país atraente para investidores de peso.
Ambos, taxa de juros e preço da energia elétrica arrefeceram, mas o que se viu e ouviu foi que não era hora, era perigoso, estávamos brincando com a Economia. Outra vez, iríamos todos para o mais profundo abismo…
Escutei exatamente esta mesma cantilena em 2008, no auge da última crise do sistema financeiro. Lembram da piada que se transformou a ‘marolinha’?
Os especialistas faziam coro com os políticos de oposição, queriam que o governo parasse de gastar e de investir e guardasse suas reservas para um eventual socorro ao sistema financeiro, como estava obrigado a fazer quase todo o restante do mundo. Queriam que o governo fechasse as torneiras, inclusive e principalmente a dos programas sociais para evitar que colapsássemos de uma vez na bancarrota, como aliás estávamos no final de 2001. Na época, batíamos outra vez a porta do FMI com o pires na mão.
Tivéssemos ouvido os especialistas daquele então, quem sabe onde estaríamos?
Pode escolher o seu canal, acompanhe meia hora do noticiário, e você encontrará neles um sentido de eminente catástrofe para muito além das catástrofes reais… E atenção para os 30 minutos que você vai escolher. Alguns canais, espremem todo o noticiário do horário nobre em não mais do que 30 minutos, intervalo entre duas farândolas.
O resultado é que faz muito tempo vamos dormir com medo. Fechem bem a porta de casa. Tranquem todas as janelas, o perigo ronda nosso sono, nossa propriedade e o nosso descanso.
Assim, entre algumas novelas diárias, 30 minutos de manchetes e alguma ênfase bastante óbvia no assunto que interesse, e nos consideramos munidos de toda a informação necessária para chegarmos vivos no dia seguinte, apesar do medo.
Não obstante, quando finalmente acordamos algumas horas depois, continuamos a rotina.
Para saber o tanto que nos rendemos voluntariamente a estas contradições, basta olhar outra vez os noticiários de 5 ou 10 anos atrás e comparar com o que realmente aconteceu. Quantas previsões se confirmaram? Garanto que o índice de acerto é muito baixo e ainda assim, são os mesmos artistas pintando quadros diante de fotografias, bem na nossa cara, dentro das salas de nossas casas.
Dessa maneira a atenção dos maiores interessados foi sendo desviada para medos de muito pouco fundamento. O que se conseguiu com isso, foi entre outras conquistas, a deterioração da escola pública, e vimos surgir um mercado pujante de Educação privada. Quase morreram igualmente o sistema público de saúde e a Previdência Social. A falência destes dois, segundo a lógica do mercado uns 15 anos atrás, daria lugar a novas e velhas instituições, muito mais capazes de prover o cidadão de serviços de muito melhor qualidade e com preços bastante competitivos. Impostos, cairiam em seguida, certo?
Pois é, estamos gastando dobrado para recompor os serviços sucateados. Entretanto ganhamos os nossos maravilhosos telefones móveis e internet 3G!…
“Fechem bem a porta e abram as suas bolsas”!
A propaganda é um bom termômetro.
Os anunciantes de maior monta, comandam o que é veiculado a diário e boa parte do que se diz é até verdade. Pena que é, não raro, só a metade de uma conversa que tiraria o sono de muita gente trancada dentro de casa.
Eis o risco de confiar a comunicação social a um número reduzido de grupos, sejam eles de gosto popular ou não. Este não é nem de longe o mérito desta questão.
Precisamos de debate político.
Precisamos ouvir esse debate onde a Democracia determina que ele aconteça, nos Parlamentos. E sim, o Parlamento é sumamente importante.
Mas precisamos de foco nesse pessoal, de dar nome aos bois daquela manada eleita por nós para falar por nós, e ouvi-los. Independente das cores ou da orientação política que possam ter, para saber se entre o que dizem e fazem há coerência, se é bom ou ruim. É preciso que saibamos quem são, e que ouçamos o que eles dizem.
Alguém poderia me justificar que existe a tv Senado ou que as sessões do Legislativo são transmitidas. Aparentemente não tem dado muito resultado e por tanto precisa ser repensado. Eu tenho cá pra mim que o que falta é o retorno. Falta justamente que seja amplamente implementado a comunicação em via dupla como acontece nas redes sociais, ou que ao menos, a conversa nos Parlamentos reverbere de verdade.
Qual a justificativa para a população saber na ponta da língua, dos dramas impostos aos heróis e heroínas pela miríade de vilões nos folhetins, e desconhecer o nome dos vilões e heróis dos serviços públicos nas nossas cidades?
Seria por que a política é ruim? Claro que não.
Seria por que a política foi substituída pela negação da política? Certamente que sim.
Sinto falta, como já disse antes, da discussão local. Das soluções nativas e muito mais adequadas a cada cidade, em cada estado. Se ela acontece agora, como foi estruturada faz quase trinta anos, obviamente não está sendo suficiente.
Alguém me disse ainda ontem que a cada dois anos, todos os conceitos sobre tecnologia que se possa ter, mudam. Como não mudaram nossa estrutura de comunicação?
Estou cansado de ouvir a defesa pela revisão dessa estrutura, confundida com alguma censura imposta aos veículos, quando na verdade o que essa defesa quer é que haja mais veículos. Veículos menores, mais locais. Multiplicidade deles, como é múltipla a mesma matriz da população.
Temos ferramentas tecnológicas e pessoal qualificado para fazer ouvir o que o Povo realmente quer. No final, esse querer não passa de ver satisfeitas as necessidades mais básicas que todo mundo tem. Sob a perspectiva da História, foi sempre assim que aconteceu.
Nunca como agora tivemos condições de dar voz às ruas, e mesmo assim insistimos em permitir que as conquistas suadas, de muitos erros e acertos nos últimos anos, sejam exaltadas ou suprimidas conforme a opinião de menos de 1% da população.
Dos maiores riscos de se confiar a propaganda a direção do curso político é justamente trazer para a discussão diária o que não nos serve, e esconder o que realmente faz e sempre fez a humanidade caminhar para frente.
Precisamos voltar urgentemente a discutir nosso futuro como nação, e deixar de lado pelo menos um pouco, este aspecto sem sentido de um mundo meramente de números e dinheiro que nos segrega, nos divide e nos deixa fracos, menos humanos.
Discutimos à exaustão se vamos permitir mais ou menos juros, se a balança comercial vai melhor ou pior. Se a produção da indústria vai suprir a demanda, se vai gerar alguma inflação ou não, como se apenas isso fosse importante.
É importante, mas existe muito mais!
E é exatamente este muito mais que precisa voltar a ser pensado, precisa voltar a frequentar as primeiras páginas. Por que por esta conta de números exatos se mata e se deixa morrer de fome tranquilamente.
Já passamos em muito do tempo de achar que ricos cada vez mais ricos ajudam pobres a serem cada vez menos pobres.
O Estado não tem que carregar ninguém que possa caminhar com as próprias pernas, mas tem que prover o cidadão de tudo o que ele precisa para poder apoiar-se sobre elas, a começar por garantir a cidadania.
Isto não é gasto, não é custo. É investimento em sono tranquilo.
Sem medo de sair de casa, ou de ao deitar-se, largar aberto algum ferrolho extra na porta da rua.
*Sérgio Mendes é professor de inglês e escritor. Colabora com o Quem tem medo da democracia?, onde mantém a coluna “De olho na história“.
Fonte: http://quemtemmedodademocracia.com/2013/02/04/sergio-mendes-o-brazil-nao-conhece-o-brasil/