O bravo cinema que antecede o golpe

Por Juliana Magalhães

Em 2016, filmes como “Aquarius” e “Que horas ela volta” expressaram esperança num novo país. Neles repousa inspiração para resistir a quem nos exige humildade obrigatória

Em um ano especialmente conturbado para a história recente do Brasil, ainda há muitas dificuldades em explicar os acontecimentos presentes sob uma limpidez inquestionável e ainda mais difícil interpretar tais explicações complexas sem um aglomerado de dúvidas que esvoaçam sobre a cabeça. Nos momentos iniciais e angustiantes do pós-golpe, vê-se o extermínio dos direitos sociais conquistados até aqui cada vez mais próximos. Há muito o que refletir sobre a miséria dos capítulos que se aproximam do tangível e que irá ruir as estruturas – ainda imaturas – de ascensão social das regiões mais pobres do país. E junto com a ruína dessa estrutura, vai-se também um bem imaterial construído com os programas sociais que impulsionaram o direito à dignidade: a autoestima – ainda fragilizada – dos brasileiros mais pobres.

Em meio às cinzas do céu de Brasília que expande para todos os céus do país e uma óbvia crise de humanidade, filmes grandiosos para o cinema brasileiro que imprimem traços do nosso tempo surgem no ano de 2015 e 2016: por exemplo Que horas ela volta, de Anna Muylaert e Aquarius, de Kléber Mendonça Filho. É o cinema do natural absurdo: filmes que nos apresentam forças que se colidem e nos fazem refletir, sobretudo, sobre o valor das pessoas e suas variáveis. Anna Muylaert nos apresenta esse desequilíbrio que sustenta e reflete os golpes diários: a ausência total da autoestima de uns e a presença excedida em outros. Esses “outros” que por possuírem essa característica tão acentuada, ainda consideram o direito à autoestima um artigo de luxo, que de forma alguma pode ser facilmente acessível para “qualquer um”.

Anna Muylaert recriou um espelho dramático do Brasil ao desafiar às leis físicas que diz que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. A cineasta apresenta esse confronto tácito como uma guerra fria entre esses dois corpos biologicamente e fisicamente iguais, mas de berços completamente diferentes. Um corpo é nascido no Nordeste do Brasil – que realiza esse movimento Nordeste – SP desde o século XIX. Há nesse corpo uma humildade obrigatória e imposta nas entrelinhas por estar “invadindo” um território que não lhe pertence. E há outro corpo.  Esse corpo que é da elite da cidade de São Paulo – essa figura imponente e historicamente superior que “abre as suas portas” para os brasileiros que saem de seus estados em busca de uma vida melhor. Vem deles essa quase exigência de que o invasor de terras alheias seja extremamente modesto e reconheça o seu lugar no mundo. Que para ser mais confortável, deve ser precisamente abaixo dele. No quarto dos fundos, longe da inteligência, das universidades, das obras de arte, do sorvete mais caro e da autoestima.  Ao “invasor” de bom senso, cabe o exercício diário de se olhar no espelho e reconhecer a pequenez de sua existência diante da grandeza do patrão.  Cabe esse respeito genuíno às leis da supremacia.

O incômodo é gerado quando uma nordestina se comporta como gente “normal” e subverte a ordem do cada lugar na sua coisa. Essa nordestina tem um problema irritante e estranho: é segura demais de si. Ela acha que tem valor (mas quem ela pensa que é para achar que tem?). Ela vai tentar entrar numa universidade concorrida. Ela é inteligente. Ela gosta de arte.

Como ela ousa ser tão suficientemente boa?

O cinema que antecedeu o golpe tem algo importante a nos dizer sobre os últimos anos: esse corpo que nasce, cresce e se desenvolve nos “subúrbios” brasileiros e que conquistou direitos básicos nos últimos anos está começando a ocupar lugares jamais imaginados – nem por eles, e nem pelos “outros”. Para esses “outros”, é inimaginável uma situação em que um “suburbano” tenha o mesmo nível – ou um nível superior – de instrução, inteligência ou autoestima que ele. É preciso possuir aquele ar acuado – sem nenhuma poesia – de quem sabe o seu lugar de inferioridade. É preciso abaixar a cabeça, sorrir, e estar sempre pedindo desculpas ou agradecendo por tudo. É preciso ter a consciência de sua mediocridade histórica. Após anos e anos de conquistas que fizeram muitos brasileiros acreditarem que podem ser gente e sonhar sonhos de gente – assim como a nordestina descrita acima –  chegamos a um ponto trágico da história: o pós Michel Temer que irá congelar os gastos sociais e destruir aos poucos essa ideia tão recente de que todo mundo pode se comportar feito gente e desejar coisas de gente. O pós golpe é esse produtor fatal de uma legião de corpos que não poderá mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma saudade doída dos tempos de gente.

Fonte: Outras Palavras

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