“O Brasil vive o elogio da burrice”: o cineasta Jorge Furtado fala ao DCM sobre seu novo longa.

Jorge Furtado- Divulgação

A ideia do oitavo longa-metragem de Jorge Furtado, Rasga Coração, surgiu – pasme – nos anos 70, quando o cineasta assistiu à peça de mesmo nome escrita por Osulvado Vianna Filho, mas não poderia ser mais atual.  

Em tempos em que olhamos ao redor com ares de John Travolta tentando entender como chegamos a esse ponto, alguém tinha uma carta na manga: imprimir na tela a nossa confusão e sobretudo a confusão de nossa militância política. 

O personagem interpretado por Marco Ricca é um velho comunista desencantado que viu o amigo morrer de tuberculose em seus braços e tornou-se o mais comum dos sujeitos: um funcionário público casado, que guarda dinheiro para o futuro do filho, já não faz sexo com a esposa, espia a vizinha nua pela janela e não se envergonha de ter assumido uma vida confortavelmente ordinária, mas tem ainda em si adormecida a rebeldia do bom combate. 

Sua esposa é uma dona de casa conservadora que parece esconder de si mesma que nem sempre fora tão correta assim; seu filho, interpretado por Chay Suede, é um arquétipo da dita nova esquerda: vegano, usa saia e batom vermelho, nega o sistema e come seus goji berrys pagos com o salário do pai. 

Uma questão ecoa inevitavelmente, embora a essa altura já seja um clichê: ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais? 

De um lado, um velho comunista que anda de ônibus e pensa que o filho precisa olhar pra fora de sua bolha. De outro, um garoto com muita vontade de mudar o mundo, mas pouca vivência fora de seu próprio quarto em Copacabana, que respeita a história do pai mas revela, em momentos pontuais, sua frustração por tê-lo visto se tornar um engravatado que trabalha para o governo – mas, se não fosse assim, quem pagaria pelos goji berrys? 

Em entrevista ao DCM, Jorge Furtado mencionou o elogio da burrice: “parece que na extrema-direita as pessoas têm orgulho de serem burras.” E têm, mesmo, mas talvez, penso com meus botões, talvez nós tenhamos também muito orgulho de sermos inteligentes, e isso certamente soa arrogante pra quem não compreende nossas metáforas refinadas.  

Os partidos políticos precisam de autocrítica, a militância precisa de autocrítica, a imprensa precisa de autocrítica, e a classe artística também precisa – e urge.  

Jorge Furtado não só reconhece isso, como leva essa preocupação para seus filmes: é daqueles que compreendem a necessidade que tem o artista de falar com o povo – com o estudante universitário que usa saia, com o funcionário público, com a dona de casa, até com o direitista que lê a Veja – e compreende que o grande barato da arte é justamente falar com o povo. 

Quando um artista consegue falar com o povo, suas metáforas ricas tornam-se menores: a grande riqueza intelectual está em mover quem precisa sair do lugar, mas não sabe como – “o cinema não existe pra dizer o que as pessoas querem ouvir, mas pra dizer o que as pessoas não sabem que querem.”

Um filme com questionamentos urgentes para todos nós, e sobretudo carregado de sensações – porque de informação estamos cheios até a tampa – que nos conduzem a discutirmos nossa relação conosco e com o Brasil de nossos dias.  

É o momento de se enxergar na tela pra se enxergar de fora. 

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