O jornalista Octavio Guedes, em uma recente declaração, alertou para o risco de uma aventura nos moldes de El Salvador em nosso país. Esse receio já ultrapassou o campo da conjectura. A questão agora não é mais se isso pode acontecer, mas o que poderia impedir que ocorra.
A quem entende que as principais referências da extrema-direita no Brasil sejam Trump e Milei, digo: aguardem mais um pouco. Embora Trump lidere um colosso militar e econômico, e Milei se consolide como referência de políticas neoliberais para países do chamado ‘sul global’, é Bukele — e sua modesta El Salvador (assim como Cuba um dia foi) — quem encarna a resposta ao que se apresenta como o principal problema para os brasileiros e um tema central no debate sobre todo o continente.
Na última pesquisa QUAEST (27/01/2025), o motivo de maior descontentamento da população não foram os preços dos alimentos (embora muito bem posicionados – 21%), mas a segurança — ou melhor, a violência (26%). A extrema-direita brasileira já percebeu isso. Basta observar os movimentos de figuras como Caiado, Tarcísio, Ratinho Jr. e, em menor grau, Zema. Embora entusiastas do neoliberalismo de Milei e do ultraconservadorismo de Trump, é na segurança pública — mais especificamente no uso político das polícias militares — que tentam se apresentar como a solução para o caos.
O êxito dessa política é, até o momento, parcial. Embora esses governadores desfrutem de boa aprovação em seus estados, há barreiras que os impedem de expandir sua influência, inclusive para ultrapassar suas fronteiras. Uma delas é a limitada autonomia dos estados na definição da política criminal e penitenciária. Eles até firmam pactos com outros poderes e órgãos locais — em um jogo de complacência e concessões não ditas —, mas existem limites que não podem ser abertamente transpostos. Assim, por não poderem seguir o ‘caminho Bukele’ e simplesmente abolir o ‘ordenamento jurídico’ e tornar o Poder Judiciário um fantoche, acabam fazendo menos com um custo político mais caro.
Outro fator é que a direita — refiro-me à extrema-direita bolsonarista e à vertente lavajatista — não soube aproveitar o momento histórico em que detinha o Poder Executivo, exercia grande influência sobre o STF e gozava da cumplicidade da grande mídia. Por tolice e outros fatores, perdeu essas posições estratégicas, e a falta delas agora lhe custa caro.
E se, em um futuro próximo, essa oportunidade se repetisse? É possível que alcançassem um êxito político similar ao de Bukele. Vamos deixar de lado aqueles que estão longe da influência de milícias e facções. Peguemos como foco os 23 milhões que vivem sob seu domínio. Será que a maioria não apoiaria uma política que, embora deslegitimasse direitos, propusesse uma ‘limpeza do território’ com prisões em massa de supostos envolvidos com a criminalidade?
Imagine a cena: polícias e forças armadas adentrando numa comunidade, fazendo buscas em milhares de casas sem mandado, e, por fim, escoltando centenas de presos, apreendendo dezenas de fuzis. Tudo isso registrado por drones e equipes de filmagem, tal qual num filme. Como a ‘‘opinião pública’’ reagiria? O que se diria no botequim? Certamente, haveria quem protestasse, apontando que a operação teve diversos flagrantes de ilegalidade, que houve vítimas de balas perdidas, teremos aqueles que trarão dados que nos dirão como essa política está tornando as prisões ainda mais superlotadas e aumentando o exército das facções.
Sim, haverá quem se importe com os abusos, com a supressão de direitos, com os riscos para a democracia e com a possibilidade de um regime autocrático e autoritário. Tais protestos, tais críticas foram vistas também em El Salvador, inclusive por organismos internacionais e, apesar de tudo isso, Bukele foi reeleito com apoio de 90% da população.
A esquerda sabe disso? A cúpula, sem dúvida. Mas de que adianta, se hoje faltam braços e ideias para mover as engrenagens? Perdemos o cavalo selado no início dos anos 2000 — o porquê, ainda é um mistério, embora tenha minhas suspeitas. Naquele momento, a oportunidade de uma reforma profunda na segurança pública era evidente. Deixamos escapar uma janela histórica que poderia ter nos livrado da herança imposta desde 1969 e, muito provavelmente, nos poupado de lidar com uma pouco elogiosa ‘Bancada da Bala’.
Nossa condição atual é tão fragilizada que, ao tentar viabilizar uma ‘PEC da Segurança Pública’, somos forçados a fazer concessões dentro de um texto que já é, por si só, um amontoado de concessões. Parece que o que nos resta é empurrar o problema com a barriga, não com uma estratégia de resolução futura, mas para adiar um cataclismo. O que nos cabe neste latifúndio seria “esperançar” no inesperado? Que o acaso abençoe este país e nos dê uma solução. Até hoje, isso nunca deu certo, mas a fé, essa, não há de faltar.
Pedro Chê é Policial civil e historiador.
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