“Você não pode enfiar uma faca 9 polegadas nas costas de um homem e depois tirar 6 polegadas e dizer que você está fazendo progresso”. A frase de Malcolm X, que foi um dos grandes defensores dos direitos dos negros nos Estados Unidos, é repetida por Douglas Belchior, 34, expoente do movimento negro brasileiro e novo blogueiro da Carta Capital, para ilustrar a situação racial no Brasil. “Menos de ¼ da história do Brasil aconteceu livre da escravidão. Até agora nós tivemos avanços pontuais, mas nenhuma grande mudança, especialmente de mentalidade.”
A primeira mudança de mentalidade que Belchior tenta promover é o combate à noção de que não existe racismo no Brasil. “O Brasil é um país estruturalmente racista, construído sobre a escravidão, e que nos anos 30 desenvolveu um discurso sui generis para substituir o discurso da supremacia racial, a grande criação política e ideológica de Gilberto Freyre, o Casa-Grande & Senzala, a ideia de uma miscigenação tranquila, que na verdade, serviu para que a população aceitasse contratar a mão de obra negra com o fim da imigração”, diz ele, professor de história formado pela PUC e membro do conselho da UneAfro Brasil.
No Brasil, não aconteceu a segregação violenta que tomou conta dos Estados Unidos, país de Malcom X, mas isso não significa que a vida dos negros tenha se desenvolvido de maneira muito melhor. “Pelo menos com a política de lá, o conflito racial apareceu mais marcado”, diz.
Por aqui, ele ressalta, o racismo está inserido no modo geral de ver o mundo e até em programas de televisão que aparentemente parecem grandes progressos como o Esquenta! de Regina Casé, na Globo. “Você vê e pensa que ele é ótimo, não é? Pensa que é um avanço, tá cheio de preto dando entrevista”, diz. “Mas depois você vê que é o mesmo estereótipo de sempre, a mesma representação do negro, do lugar do negro, as mesmas ideias”.
O racismo também aparece quando um policial “acha que todo preto que encontra é suspeito”, está estampado no número de mortes de negros anualmente. “Acho incrível que a Comissão da Verdade, o movimento pelos direitos humanos no Brasil esteja preocupado apenas com a ditadura. Por que a ditadura e não o conflito racial?”, questiona Belchior. “Todo ano morrem 600 pessoas assassinadas pela polícia, a maioria negros. Todo ano, morre um número superior ao de mortes na ditadura. Eu não desmereço o que aconteceu na ditadura, mas vamos olhar para a realidade?”
O caminho da educação
“Talvez se o policial que hoje tem 22 anos tivesse tido uma educação melhor, se tivesse aprendido mais sobre a história da cultura afro-brasileira, como determina a lei de 2003 que está sendo muito pouco cumprida, talvez ele não olhasse para os negros sempre como suspeitos”, diz Belchior, chegando ao ponto alto do que ele crê que é necessário para essa mudança de mentalidades: educação.
Belchior é defensor da política racial de cotas em universidades e atuante na UneAfro Brasil, uma das redes de cursinho que dá chance aos estudantes de baixa renda se prepararem para o vestibular. Ele mesmo só conseguiu entrar na PUC, na segunda tentativa, por causa de um desses cursinhos, e pôde se manter lá até se formar por causa de uma bolsa oferecida pela faculdade.
Nos cursinhos, os alunos aprendem para passar nas provas, mas também são convidados a repensar seu engajamento político, a “combater a descrença, a despolitização e o uso da política em benefício próprio que hoje está em vigor”. “Nunca a sociedade foi tão tomada pelos sentimentos conservadores da elite”, diz. “Os negros recebem educação racista, assim como as mulheres recebem educação machista. Tenho três filhos e uma filha, e sinto que a se gente não disputar cada palmo da educação deles, a sociedade vai educá-los para você, porque já o papel da família não é o mesmo, o papel da escola não é o mesmo. Vai ser pelos meios de comunicação, que estão na mãos de reacionários, pelo Facebook, pela televisão.”
Belchior mantém um blog, o Negro Belchior, desde 2009. Nele, discute temas do cotidiano, analisa coberturas da imprensa sobre questões raciais, divulga eventos e incita discussões. E é ele que migra nesta sexta-feira, 2 de agosto, para o site de CaraCapital. “O movimento negro tem um olhar sobre o mundo, uma maneira de interpretar a cidade, é sobre isso que eu escrevo”, diz. O blog tem seus seguidores, mais seu alcance, até hoje, é local. “Agora, na Carta Capital, imagino atingir mais gente, e já estou até preparado para apanhar mais, já que o que eu digo não agrada todo mundo”, ri.