Por Carmen Susana Tornquist, para Desacato.info.
Há muitos motivos para os “djuruá” (brancos ou não-indígenas, em guarani) apoiarem as lutas dos povos indígenas no Brasil, entre as quais o combate à PL 490, que entra na pauta do Senado hoje, dia 30 de junho. Gostaria de falar sobre uma delas, junto a outros aspectos que tem mobilizado campanhas no Brasil e pelo mundo afora, em defesa dos originários pueblos de nossa região.
Trata-se do fenômeno chamado etnogênese. Ele se refere ao crescimento da população indígena no país, após a tragédia do genocídio decorrente da Conquista e do Otrocídio, entabulado desde então contra formas diversas da sociabilidade capitalista – de ver e viver a vida. Etnogênese se refere, assim, ao crescimento demográfico posterior a esta tragédia inicial, e observado, no caso do Brasil nas últimas décadas, sobretudo entre 1992 e 2000. Este crescimento foi mensurado pelo último censo que tivemos no país (2010), que apontou um aumento de 205% referente ao período anterior, de pessoas autodeclaradas indígenas nos diferentes estados da federação, não obstante os dados reforçarem a ideia corrente de que os indígenas são uma minoria da população (0,47% da população). Atribui-se o fenômeno a uma série de processos, que podem ser sintetizados assim:
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A crescente autodeclaração dos indígenas, acerca de sua verdadeira descendência, estimulada pelo movimento indígena e por outros sujeitos políticos que atuam junto à causa indígena (antropólogos, ambientalistas e indigenistas críticos, ou seja, posteriores ao indigenismo assimilacionista);
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As políticas de valorização das culturas e das etnias indígenas promovidas pelo próprio Estado – ainda que de forma tímida – e por apoiadores da causa, de uma forma geral; contribuindo para a positivação das etnias e identidades indígenas;
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O reconhecimento do direito dos povos indígenas aos seus territórios, ou seja, a política de demarcação de terras indígenas no país, garantindo, assim, de forma concreta e objetiva, a possibilidade de reprodução de um modo de vida indígena, ainda que articulado com o modo de vida – e de produção – da sociedade envolvente (ou seja, capitalista e dependente) e, evidentemente, distante do que, outrora, foi conhecido por grande parte dos povos originários.
No caso de Santa Catarina, estado cujos próceres adoram arfar os peitos colonizados para ressaltar ancestrais europeus de cada vilarejo ou cidade onde encontrem eleitores, a presença indígena – ainda que “demograficamente pequena, nos faz refletir. Segundo o mesmo censo, temos que 16.041 indivíduos indígenas vivem em SC: a maioria em Terras Indígenas em momentos distintos de reconhecimento, mas também vivendo em cidades. É o caso de Florianópolis, que teria, em 2010, 1028 indígenas entre sua população. (Os dados não incluem os artesões indígenas que, costumeiramente, passam vários meses vendendo seus artesanatos, nas cidades do litoral). Uma análise muito boa sobre o processo histórico de ocupação das terras ditas catarinenses é o texto de Clóvis Brighenti, disponível na página do IELA- UFSC- Os Povos indígenas em SC.
De fato, encontramos com muita frequência indígenas vivendo nas periferias urbanas. O apelido “índio” é bastante popular, e indica um colega que veio de fora , é indígena, mas que compartilha o dia a dia de muitas ocupações da região, assinalando a migração permanente- em busca de trabalho e renda – como dimensão bem conhecida dos “de baixo”, como dizia Florestan. E não é só no Brasil que a condição étnica se mescla com a condição de classe. Em países como Peru, Paraguai e Bolívia, por exemplo, grande parte dos camponeses e dos trabalhadores das minas é, historicamente, indígena, como observou José Carlos Mariátegui, já no início do século XX. E os preconceitos étnicos são acionados- tristemente, como já observava Engels – tanto mais se mostrem afeitos ao rebaixamento dói valor pago ao trabalhador- e aí vemos os migrantes ilegais, tantos e tantos de origem indígena, serem subjugados uma vez mais, pela sua condição étnica, por todo o mundo. São (e foram) milhares de indígenas agricultores, mineiros, peões laborando da construção de obras de infraestrutura, como rodovias, ferroviais, etc…. Em uma entrevista que fizemos com Romancil Kretã, publicada na Revista Percursos(UDESC), em 2018, escutamos deste importante líder kaingang aqui do Sul o testemunho pessoal de como sua vida esteve permeada por sua participação – enquanto trabalhador – nas obras que ajudaram a “construir.
No Brasil, a similaridade da condição de vida e de sua reprodução entre indígenas e pobres, seja no campo, seja na cidade, segue a mesma toada: não sendo possuidores de meios produção – em particular, da terra – dependem da venda de seu trabalho a precários salários e condições, ou – ou “e/ou”, de políticas compensatórias do Estado, a depender de algum governo minimamente humanista. Foi o caso dos governos do PT, que diminuíram significativamente os processos de demarcação de terras indígenas, apostando na reprimarização da economia e em estratégias de conciliação, ao mesmo tempo em que estenderam programas sociais de combate a extrema pobreza – como o Bolsa Família – às comunidades indígenas. Mesmo assim, os problemas de acesso e cobertura ao programa não foram pequenos, como mostrou o estudo de Ricardo Verdum e colaboradores, sobre este tema, a partir de demanda do MDA, em 2016.
Considero fundamental perceber como a classe trabalhadora brasileira está “misturada” com o povo indígena e vice-versa. Há, nesta via, até mesmo o fenômeno dos índios misturados, apontados por vários antropólogos, mostrando a existência de um “preconceito” muito peculiar sobre aqueles grupos que, tendo vivenciado processos de mestiçagem ao longo de sua existência, são considerados falsos indígenas – isto quando há algum tipo de positivação das etnias indígenas, como de fato, foi ocorrendo de forma frágil e “heterogênea” – mas acontecendo – no período posterior à CF de 1988. O tema do preconceito e a questão da heterogeneidade são complexos, e não posso desenvolver aqui, mas daí as “aspas” que os acompanham.
Nos cursos de antropologia e correlatos que ministrei ao longo de minha vida me deparei com depoimentos incríveis de estudantes que, ao perceberem a magnitude da questão indígena e os elementos trágicos de uma história de violência e subjugação, me reportavam relatos familiares, sobre avós, bisavós e até mesmo tios que tinham origem indígena, mas que… silenciavam sobre o assunto diante dos colegas por vergonha. Com o avançar do tempo – e das lutas – estes segredos escolares foram passando para a cena central, a vergonha cedendo o passo ao orgulho, a subalternidade dividindo o tempo com a resistência, e vi muita gente assumir seu lado kaingang., guarani, terena e etc. de forma pública, de forma muito similar ao que vem ocorrendo com o povo negro no nosso país. E muitos transformando isto em temas de investigação científica ou de criação artística Bonito de ver!
Nesta via, e face à iminência do esperado Censo de 2020, companheiros servidores do IBGE, entusiasmaram-se com a possibilidade concreta de chegar mais perto da vida real e não mediram esforços – pelo menos, aqui em SC, que eu vi de perto – para aperfeiçoar instrumentos de coleta, questionários, localização dos indígenas de carne e osso, e a necessária qualificação dos recenseadores para o tema. Mas este Censo não foi realizado.
Acredito que quando ele ocorrer – e se forem garantidas as condições corretas para sua realização – nos depararemos com um Brasil no qual esta aparente minoria nos surpreenderá com seu crescimento demográfico, tanto como nos surpreende com sua resistência e com sua coragem.
Há, de fato, muitos motivos – muitos, mesmo – para o povo brasileiro defender a luta indígena pelo direito a seus territórios e a seus modos de vida. Acredito que no devir indígena que está a se gestar em Nuestra América, o componente demográfico- a etnogênese – ocupa um lugar fundamental.
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