Por Flávio Aguiar.
Nestes tempo de golpe de estado no Brasil as conversas podem ficar muito difíceis. Amizades podem virar pó de uma hora para outra. Conheço inúmeros casos.
Comigo também se passou algo parecido. Um amigo – ou ex-amigo, nesta altura – virou um anti-petista ferrenho, o que é, convenhamos, um direito dele. Ele já era de direita, o que também é um direito dele. Mas extrapolou.
Acontece que diante de afirmações como a de que “mas durante os governos de Lula e Dilma a situação dos pobres melhorou, a miséria diminuiu, o padrão de vida dos trabalhadores assalariados subiu, etc.”, ele passou a reagir raivosamente: “é tudo mentira”. “Nada disto aconteceu”.
Um dos problemas aí é que tal reação chama de mentirosos não só Lula, Dilma, o PT, os petistas, e eu de quebra, mas também a ONU, a OEA, a OIT, a UNESCO, a FAO, boa parte da União Europeia, a Itália, que recentemente adotou um projeto do tipo Bolsa Família, economistas indianos, a OCDE, além do IBGE, naturalmente, e etc.
O outro problema é que isto é repetido ad nauseam pelo exército de coxinhas e paneleiras(os) que infesta as ruas e nossos ouvidos de vez em quando (andam mais discretos, aliás…), além dos arautos do antipetismo distribuídos pela mídia conservadora, quando não estão ocupados em obter os vazamentos seletivos de quanta operação seja urdida por promotores que se arvoram a juízes, juízes que se adoram promotores e policiais federais que se arvoram a promotores e juízes.
Mutatis mutandis, isto me lembra o comportamento de gente que até hoje nega o Holocausto, por exemplo. Ou então a entrevista recente dada pela ex-secretária de Joseph Goebbels, hoje com 105 anos (!) e a única sobrevivente do círculo próximo do Führer. Nela, a entrevistada afirma , sobre os crimes genocidas dos nazistas, que “não sabia de nada”, que só datilografava o tempo inteiro. A provecta senhora que me desculpe, com todo o respeito, mas é mais fácil acreditar que ela simplesmente não queria saber de nada desde sempre. Posto que ela até se recorda do estranho sumiço de amiga judia. Sé depois da guerra ela ficou sabendo que esta pessoa fora levada para Auschwitz. O mesmo aconteceu e acontece com gente que até hoje nega que tenha havido tortura no Brasil durante o regime civil-militar de 1964. Ou os que o querem de volta, embora haja os que querem que ele volte com tortura e tudo.
Curioso, perguntei a um outro amigo meu, psicanalista, como se poderia chamar esta atitude de negação contumaz da realidade. Ele me disse que há uma qualificação clássica na psicanálise que se chama de “alucinação negativa”, em que as pessoas que dela são objetos se negam a ver uma coisa – até mesmo objetos concretos, por vezes, ou a ouvir algo que não querem admitir. Pesquisando mais um pouco, deparei com experiências mostrando que esta “alucinação negativa” pode ser induzida até por hipnose que, no fundo, é o que a nossa mídia tradicional costuma praticar, seguindo a orientação famosa daquele mesmo Goebbels acima lembrado, de se mentir tanto até que a mentira vire verdade. É claro que é necessário um tipo de consentimento por parte do objeto de tal manipulação.
Tudo isto vem na esteira do esforço de aleijar e alijar a esquerda na história não só futura – mas também do passado. Os governos de esquerda é que são os responsáveis pelo desarrazoado do mundo e das economias – da brasileira e da mundial. Eles nada fizeram senão cometer erros e mais erros; tudo não passou de uma “ilusão”. A “mentira” do meu amigo lá de cima.
O curioso é que existe também muito intelectual e analista de esquerda que pensa assim, inclusive aqui na Europa. Pululam os intelectuais que pregam que tudo o que a esquerda latino-americana, não só a brasileira, fez nos últimos anos foi só uma ilusão. E que eles, estes intelectuais e analistas, é que sabem o que nós, os latino-americanos, deveríamos ter feito, fazer e vir a fazer. Esquecem (será também uma alucinação negativa?) que aqui na Europa só há dois governos de “esquerda” (” “da Redação): o de Portugal, com uma frente tripla reunindo o PS, os comunistas e verdes (hoje um partido só) e o movimento Bloco de Esquerda, e o do Vaticano, com o Papa mais à esquerda da história da Santa Madre. Nem na Espanha o Podemos e o PSOE conseguiram se juntar, ao invés de se bicar, para formar um governo. França, Alemanha, Itália, nem pensar. O governo de extrema-esquerda na Grécia foi dobrado a golpes de retórica. E aplicou o programa do Banco Central Europeu mais o Banco Central Alemão e o chanceler Wolfgang Schäuble, tão mau quanto Meirelles. A esquerda, aqui, virou um nicho universitário, em 95% dos casos.
Mas eles, os intelectuais europeus, é que sabem o que é melhor para o mundo.
Fonte: Blog Boitempo