Por Marcelo Zorzanelli.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é velha, arrogante e patologicamente cínica. Imagine a turma: a entidade mais “respeitada” do cinema é formada por 5 700 profissionais. Deles, 93% são brancos, 76% são homens e a idade média é de 63 anos.
Parece ter boas intenções a campanha que pede que convidados negros boicotem a cerimônia de entrega das estatuetas art deco que um jornalista achou parecidas com seu tio Oscar (o nome pegou) .
Mas veja a resposta da venerável instituição: prometer que dobraria o número de negros votantes até 2020.
É o “cala-boca” mais pusilânime de que se tem notícia. A Academia tem 2% de integrantes afro-americanos. São por volta de 110 negros contra 5 300 brancos. Em cinco anos, portanto, prometeram colocar mais uma centena de pessoas de pele escura. Duzentos contra cinco mil.
A desconexão com a realidade parece sequência de algum filme distópico em que argumentos racionais são proibidos. “Vamos expandir nossa rede de votantes sem diminuir a qualidade”, disse a Academia sobre colocar mais mulheres, latinos e negros para dentro. Contar com as faculdades mentais de mais negros e mulheres, obviamente, é sinônimo de comprometer a qualidade das escolhas, portanto: olhos abertos. Os mea-culpas lembram mesmo um filme de humor de Adam Sandler.
Não é possível sequer fazer o que se faz num sistema capitalista: votar com a carteira. Ninguém ali dá a mínima para os filmes que deram dinheiro. O de maior bilheteria da história, Star Wars – O Despertar da Força, tem um negro de nariz achatado como protagonista. Creed, sucesso de crítica e bilheteria, protagonizada pelo fabuloso Micahel B. Jordan, teve o italiano Stallone indicado. Straight Outta Compton, a saga preferida de Hollywood (da pobreza à fortuna), fita que arrecadou US$ 200 milhões, tinha o defeito de ser uma história de pretos do gueto. Mas, ah! Pelo menos os dois roteiristas brancos foram indicados.
A atriz Octavia Spencer, que ganhou o prêmio de melhor atriz coadjuvante em 2012 pelo filme Histórias Cruzadas (fazendo o quê, senão uma empregada doméstica), disse: “A verdade para mim é que achei que depois do prêmio meu telefone tocaria o tempo todo, mas isso não aconteceu.” A revista Forbes descobriu, em 2013, que 81% dos homens agraciados com o Oscar veem seu contra-cheques engordar. Entre as mulheres o salário não muda ou diminui após a vitória.
“Você não pode boicotar um evento para o qual nunca foi convidado”, disse Ice Cube, produtor de Straight Outta Compton e integrante do grupo de rap N.W.A. (Niggaz Wit Attitudes ou “pretos mal educados” em tradução livre) cuja ascenção foi contada no filme. “Fazemos filmes para os fãs e se eles te dão um troféu ou tapinhas nas costas é legal mas não é algo que merece muita atenção. É como reclamar que seu bolo está sem muita cobertura. É ridículo”, completou.
Cube é apenas um dos artistas negros que tomou uma atitude diferente em relação ao diálogo com os donos do Oscar. Não deu manchete feito as hashtags marketeiras como #OscarsSoWhite (Oscars muito brancos). Que, aliás, lembra ao colunista a campanha “Somos Todos Macacos”, aquela que, de acordo com a capa da revista Veja, decretou o fim do racismo no Brasil.
O que vale e sempre vai valer nestes entreveros, mesmo um potencialmente inócuo e mal direcionado como este, é ouvir vozes que pouco se ouve.
A atriz Janet Hubert, que estrelou o seriado “Um Maluco no Pedaço” ao lado de Will Smith, tem isso para dizer: “Nossos meninos estão sendo fuzilados a torto e a direito. Pessoas estão morrendo de fome. Pessoas não conseguem pagar as contas. E vocês estão falando de merdas de atores e Oscars.”
Whoopi Goldberg também não planeja boicotar a cerimônia. A comediante famosa pelos filmes Mudança de Hábito tornou-se colunista de programas de TV e acha que não é por aí. “Por que ter esta conversa só uma vez por ano? Eu não vou boicotar mas vou continuar gritando como sempre faço o ano inteiro porque estou de saco cheio de ver filmes em que só uma parcela minúscula da população é retratada.”
O ator inglês negro Idris Elba, criminosamente ignorado por sua atuação avassaladora em Beasts of No Nation, disse o seguinte sobre o boicote: “Você tem que se perguntar – negros estão normalmente representando marginais? Mulheres são apenas pares românticos que só falam sobre homens? Gays são sempre esterotipados? Portadores de necessidade especiais sequer aparecem?”
Até Spike Lee, nos primeiros dias da “campanha”, registrava outro tom: “Do jeito que vejo, o prêmio da Academia não é onde a batalha está. É nos escritórios executivos dos estúdios de Hollywood e das TVs. Onde os Donos dos Portões decidem que é feito e o que é jogado no lixo. Os Donos dos Portões. Aqueles que acendem a luz verde.”
A atriz Mo’Nique, que levou o Oscar em 2009 por Preciosa, não poupou o clã Smith, de onde a campanha emanou: “Você já venceu. Você já é milionário”, disse. “Nós vamos nos erguer contra um troféu banhado a ouro ou para pedir salários e tratamento igualitário? Estamos nos levantando porque chegou no seu quintal? Os Oscars não são diferentes agora do que foram nos últimos… 89 anos que acontecem”, arrematou.
Disse tudo o deputado americano Danny Davis, um negro militante desde os anos 1960: “Minha prioridade em enfrentar a Academia? Lá embaixo, perto do fim da lista. Se eu marchar, será pelo Black Lives Matter (movimento que denuncia a brutalidade policial e a corrupção no sistema jurídico contra negros) e não por uma estatueta.”
Ao escutar estas vozes negras, o espetáculo da campanha do boicote vai se dissolvendo cada vez mais em uma farsa.
Por que ainda se fala, por que ainda se importa com o Oscar? Culpa da mídia. A especulação sobre indicações, a fofoca, os confetes jogados e as platitudes ditas por nefelibatas como Rubem Oswald Filho emprestam à vida do espectador uma aura de “glamour”, seja lá o que isso quer dizer.
No dia seguinte, está todo mundo dizendo que odiou ficar acordado até mais tarde, que a apresentação foi mal planejada, as piadas com figurino e gafes se empilham na timeline etc.
A lona é dobrada, as estacas jogadas em cima do caminhão e o circo só volta a ser montado no começo do ano seguinte. O que acontece até lá? Os 5 mil e duzentos brancos milionários da Califórnia ficam contando seu dinheiro.
Ice Cube escreveu o icônico rap “Fuck the Police” em 1988. “Foda-se a polícia”, grita no refrão. Em 2016, Cube deu outra letra: “Foda-se o Oscar”. Quem nunca foi convidado não precisa fazer boicote.
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Fonte: Diário do Centro do Mundo