O BNDES a serviço do ajuste neoliberal

Por Luis Fernando Novoa Garzon.* 

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Em meio aos anúncios de tetos decrescentes de oferta de financiamento público de longo prazo – no contexto de um ajuste fiscal que prepara o terreno para novas reestruturações financeiras e patrimoniais -, cabe observar e analisar o lugar do BNDES no âmbito do Estado brasileiro e, a partir dessa posicionalidade específica, avaliar a relação do Banco com os capitais privados e suas associações representativas. Não poderia deixar de ser um “lugar” mutável e cambiante, tratando-se de um Banco, de um Estado e de uma economia que se transfiguraram nas reformas neoliberais e processos de reestruturação produtiva a partir dos anos 90.

Após décadas de disciplinamento privado diferenciado, com sistemas de comando não necessariamente alinhados, pode-se falar de uma “refundação”, o que não implica em diminuição ou retração do Estado. A relação entre agências estatais tornou-se simultaneamente uma relação entre capitais, sendo que estes capitais têm poder variado de regulação privada do setor público. Haveria dois tipos de relação do BNDES com o empresariado: direta e pontualmente ou indiretamente estabelecidas em arranjos institucionais setoriais e inter-setoriais, através de associações representativas.

O Estado entretece-se nos embates sociais, o que faz com que sua autonomia seja sempre devedora do equilíbrio de forças do último acerto de contas inter e intraclasses. Não há “Estado patrimonial” em si, sem que haja antes um processo particularista e privado de patrimonialização. Mesmo nos chamados anos de “desmonte neoliberal” foi preciso fortalecer os mecanismos estatais para levá-los a termo. Nunca houve retraimento da interferência do Estado na economia, e sim alteração do foco e do formato dessa interferência. Existem conjunturas, estruturas e lugares que tornam predominante um ou outro padrão de intervenção estatal.

Ao contrário da ideia de uma gangorra entre mercado e Estado, que remeteria à separação um do outro, configura-se uma dinâmica de “estatalização” que compreenderia, por um lado, desdobramentos e repercussões da ação estatal para além do aparelho do Estado, e, por outro, incorporações e incrustações de dinâmicas privadas neste mesmo aparelho. No interior de cada um desses espaços, Estado e mercado alternam e intercambiam forma e conteúdo. Nesse arcabouço, multiplicam-se formas de “empresariamento do Estado” por meio de híbridos institucionais – como as PPPs, as Agências Regulatórias, colegiados empresariais, grupos inter-setoriais de coordenação privada que conduzem pautas, instâncias e despesas públicas.

Contrapostas ao paralelo coreano (entre os anos 70 e 80), as escolhas do “desenvolvimentismo real” brasileiro recaíram não sobre atividades de maior capacidade de “transferência de tecnologia” ou de “aprendizado institucional”, mas sobre os setores com uso intensivo de recursos naturais. Eram os setores disponíveis e capazes de impulsionar mais uma “fuga para frente” que quiçá contrarrestasse os efeitos da crise de 2008.

Foi conjugando-se com este mesmo setor que os segmentos chamados “industrialistas” no BNDES reconfiguraram a política industrial, procurando induzir transbordamentos nas empresas-líderes dos ramos frigorífico, de papel e celulose, de petróleo e gás, de mineração e siderurgia básica. A política das “empresas campeãs” serviu como efeito-demonstração dos limites “criacionistas” do Banco ou de qualquer política industrial que queira ser mais que um empenho governamental frente a metas acordadas entre as grandes empresas.

A crítica ao Banco provinda dos movimentos sociais, articulações de grupos sociais atingidos e da intelectualidade crítica se dirige não ao “poder de escolha dos vencedores” – espantalho criado pelo discurso ultraliberal em ofensiva intensiva contra qualquer “interferência” extra-mercantil. A questão é: aonde se chega com esse experimento regulatório? Com que métodos? Com quais atores e interlocutores? O Banco de Desenvolvimento, dessa forma, viabiliza e turbina os setores com utilização intensiva em recursos naturais, com grande poder de desestruturação ambiental/territorial e com efeitos redutores das cadeias produtivas, o que significa mais precarização do emprego e mais disparidade de renda.

Vê-se cristalinamente como o neodesenvolvimentismo é um neoliberalismo por outros meios. Fechada a cortina da pantomina eleitoral, PT e PSDB são plenamente intercambiáveis. Além da convergência em torno do tripé macroenômico, há razoável consenso entre eles quanto à efetivação de megaeventos esportivos e de megaprojetos de infraestrutura, pois favorecem a aterrisagem incondicionada da esfera territorializada dos investimentos em detrimento da diversidade territorial posta.

Trata-se de suspensões do tempo e do espaço, ou ajustes espaço-temporais que permitem uma intensificação do ritmo da acumulação com base na queima e na criação de novos campos de valorização e mercadorização. No caso dos grandes projetos de infraestrutura, e com base neles, são ofertadas vantagens quase monopólicas aos negócios que terão acesso regulamentar às novas zonas de valorização e novos blocos de riqueza a partir da extensão da malha viária e elétrica.

A entronização de uma agenda econômica única é apresentada como sinal do “amadurecimento” do país. Amadurecimento do capitalismo brasileiro como ele é, fundado na espoliação de bens públicos e direitos sociais, despossessão de espaços e sociabilidades extra-mercantis e na pilhagem sistemática da dívida pública. E o que está em jogo na reformatação do BNDES é o ajustamento da condução dos processos de concentração e centralização de capital no país.

Para os porta-vozes da alta finança, o ativismo do BNDES – em especial o relativo a políticas verticais, isto é, seletivas – seria um indicador preocupante na caracterização de um ambiente amigável aos negócios, porque viabilizaria “ambientes institucionais desfavoráveis”. As políticas verticais, portanto, incluindo as que dão suporte a fusões e aquisições, devem ser, doravante, “espontaneamente” definidas pelos mercados.

No atual cenário de “incerteza institucional” induzida, tornou-se hegemônica a proposição de atrofia programada do BNDES. Admite-se sua atuação em caráter mandatário ou previamente delimitada. Para tais segmentos, o BNDES só deve ser ativado para viabilizar novas privatizações nos setores de transportes e energia e para “fomentar” a criação de um mercado de capitais de longo prazo no Brasil, ou seja, gerir sua auto-extinção. Isso porque, num caso ou noutro, fica comprometido o Banco nos moldes em que está constituído, pois fundos e agências especializadas bastariam para cumprir essas tarefas.

A posição financeiro-rentista (podemos chamar assim a fração burguesa mais internacionalizada com atuação no Brasil) tem por pressuposto a crítica do “crédito direcionado” como favorecedor de práticas crowding out. Como essa fração tem plena ciência que o mercado financeiro brasileiro não irá se “colocar” espontaneamente no horizonte de longo prazo na economia, o argumento tem um propósito rotulador e pirotécnico para fins de “adequação” do Banco.

A coalizão financeiro-empresarial formada após as eleições em nome de um “governo único” do Brasil estabeleceu metas de refluxo da atuação do BNDES, o que implica em redução e depois vedação a novas transferências do Tesouro ao BNDES, além da “equalização” da TJLP pela Taxa SELIC em alta, tal como definido pelo Conselho Monetário Nacional – o que implica em uma descapitalização seletiva e um maior alinhamento do Banco às políticas de privatização da infraestrutura e de monopolização e desnacionalização do parque produtivo sobrante.

É a mais efetiva ferramenta de planejamento de que o Estado brasileiro atualmente dispõe, que está sob enquadramento e esterilização. O BNDES evocou, com seus ciclos de maior ou menor atuação no mercado de créditos e de capitais, equilíbrios complexos que foram sendo estabelecidos historicamente. Traz, portanto, “resíduos” sedimentados em seu discurso, memória, políticas operacionais e em sua burocracia, que os “purificadores do mercado” pretendem suprimir da esfera da política econômica e de financiamento: um conjunto de experiências contraditoriamente institucionalizadas que resultaram das lutas sociais e das disputas intraestatais nas últimas décadas.

Essa limpeza de rastros de tudo que possa servir de pistas ou atalhos para transições socializantes não pode prosseguir sem que a denunciemos, sem que explicitemos a lógica ruinosa que a preside.

Luis Fernando Novoa Garzon, sociólogo, professor da Universidade Federal de Rondônia, pesquisador do ETTERN – IPPUR/UFRJ.
E-mail: l.novoa(0)uol.com.br”>l.novoa(0)uol.com.br

Fonte: Correio da Cidadania

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