Na certidão de nascimento era Antônio, mas já havia sido Pedro, Fernando, Joca e tantos outros. Em cada mudança, a cada troca de personalidade, era preciso esvaziar tudo: a casa, o armário, o peito e a cuca. Havia passado tanto tempo nessa, trocando de vida e de personagem, que há algum tempo não podia precisar ao certo quem era. De certo já não era apenas Antônio, não poderia. Cada vida que havia vivido, cada novo desafio que encarava em seu ofício, o afastava mais de quem fora um dia.
Não que Antônio tivesse de fato morrido, estava vivo, mas já não era mais possível reconhecê-lo em meio àquela bagunça toda. Na realidade, de uns tempos pra cá o ator estava em crise. Sentia, e sabia, que não passava de um farsante, e que escondia por trás de tantas máscaras a vontade de não ser Antônio. E assim, de uma hora pra outra, decidiu voltar-se pra dentro de si mesmo, na esperança de reencontrar ali o que havia perdido pelo mundo. O caminho? O espelho antigo, perdido num canto qualquer daquele quarto tão sem vida quanto ele.
A primeira reação que teve ao se ver refletido naquele pedaço de água sólida parado no tempo foi a de que Cocteau estava certo quando disse que os espelhos deveriam pensar um pouco mais antes de refletir as imagens. Era, e isso era inevitável, um homem cortado ao meio, pela metade. O motivo era o teatro, era essa mania de palco da qual não conseguia se libertar. A sensação ali, parado, era a de que se transformara em um homem em branco. Não reconhecia as olheiras fundas que lhe adornavam o baixo do olho, não podia compreender como sua boca, antes viva e vermelha, era agora um rascunho perdido no meio da cara, colocada ali de qualquer jeito. Na imagem refletida nada havia de Antônio, e isso Antônio percebia.
A verdade é que a forma ali pouco importava. A água dura refletia seu silêncio, como havia declamado naquela peça sobre Clarice Lispector, e foi aí que percebeu que como homem, e como ator, sua forma também não importava tanto. Era ele ali, homem de teatro, também sem forma pronto a se desdobrar em tantos outros como água que se derrama e não cessa. O silêncio do espelho era o vazio de sua alma, e talvez fosse esse mesmo vazio o que lhe possibilitava ser tanto em tão pouco tempo. O ator, a seu ver, era ele: aquele homem simples, sem planos ou profundidade. Um homem borrão, um homem rascunho, pronto a se ver preenchido por falas, marcações, técnicas de atuação. Sem aquilo tudo, sem o teatro, era apenas um espelho silencioso e vazio refletindo o nada; e então percebeu que talvez ele mesmo, o ator, não passasse de um espelho também.
O silêncio do espelho era o vazio de sua alma, e talvez fosse esse mesmo vazio o que lhe possibilitava ser tanto em tão pouco tempo.
Afinal de contas, o ator deveria ser isso: um reflexo da própria vida. Durante todos aqueles anos, enquanto ganhava a vida no palco, percebeu que não tinha sido nada além do próprio mundo. Todas as tragédias do globo, por exemplo, couberam e ficaram guardadas no pouco do seu peito. O grito de toda criança empoeirada bombardeada pela ganância ecoava de sua boca quando gritava na boca de cena. Também já havia dado o beijo seco da morte, e os milhares de beijos apaixonados que movem as histórias de amor. Carregava nos ombros cansados, em forma de ferradura, toda a exploração e todo o peso do mundo e nos olhos insones a tristeza profunda daqueles que nunca dormem por medo da morte. Era ele mesmo o mundo, o mundo todo, ao menos quando estava em cima do palco.
E então, sem mais nem menos, o ator-universo deu-se por satisfeito e caiu numa gargalhada tremenda. Não, ele não enlouqueceu, ao menos não dessa vez. Sua risada frenética, que também sorria todos os lábios do mundo, apenas constava o óbvio: a verdade não se passa adiante. E essa verdade, essa única verdade de toda a vida, teórico algum conta em seus livros. Ele nunca se descobriria mundo pelas mãos dos outros. Isso é descoberta de garimpo interior, é pedra preciosa tirada a fórceps de dentro da gente. Isso só se descobre assim, como disse Clarice: de frente pro gélido silêncio de nosso espelho sem cor.