Por Vijay Prashad e Rupa Marya, Globetrotter.
Em 11 de novembro de 2023, a Sociedade do Crescente Vermelho Palestino (PRCS) declarou que tanques israelenses estavam a menos de vinte metros do hospital al-Quds, o segundo maior hospital da cidade de Gaza. Informaram que houve “disparos diretos contra o hospital, gerando um estado de extremo pânico e medo entre 14 mil pessoas deslocadas”. Muitos dos mortos eram profissionais de saúde. Um grupo chamado Healthcare Workers Watch-Palestine, formado em novembro de 2023, tem mantido uma lista dos profissionais de saúde em Gaza mortos por ataques israelenses (sabe-se que 226 foram mortos de 7 de outubro a 13 de novembro).
No dia anterior, a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (FICV) informava que o PRCS está “cuidando de centenas de feridos e de pessoas internadas há muito tempo” no al-Quds. “A evacuação de pacientes, incluindo os que estão em tratamento intensivo, em condições de suporte à vida e bebês em incubadoras, é quase impossível na situação atual”, afirmou a FICV. Este e outros hospitais, bem como as missões médicas e os trabalhadores de saúde, “estão protegidos pelo direito humanitário internacional”, observou a FICV. As leis a que se referem são claras:
Artigo 19º das Convenções de Genebra de 1949 (Proteção de unidades e estabelecimentos médicos). “Os estabelecimentos fixos e as unidades médicas móveis de Serviço Médico não podem, em circunstância alguma, serem atacados, mas devem ser sempre respeitados e protegidos pelas partes em conflito”.
2. Regra 25 do Direito Internacional Humanitário (Pessoal Médico). “O efetivo médico exclusivamente designado para tarefas médicas deve ser respeitado e protegido em todas as circunstâncias”.
Destacam-se duas frases similares tanto no artigo como na regra: “em nenhuma circunstância” deve ser retirada a proteção, e os trabalhadores de saúde devem ser protegidos “em todas as circunstâncias”. O direito humanitário aplica-se em todas as regiões do mundo e a todos os conflitos. Isto está agora estabelecido pelo Tratado de Roma (2002), que é a base jurídica do Tribunal Penal Internacional. O Tratado de Roma diz que é um crime de guerra se um exército “dirigir intencionalmente ataques contra edifícios”, incluindo “hospitais e locais onde os enfermos e feridos são recolhidos”. Há uma exceção: “desde que não sejam objetivos militares”. Ao afirmarem que os hospitais estão por cima dos túneis do Hamas, os israelenses estão afirmando que toda a infraestrutura médica em Gaza é um alvo militar. Esta é uma forma conveniente de contornar o caráter absoluto do direito internacional humanitário.
Nos próximos dias, é de se esperar que a máquina de propaganda isralense divulgue imagens de soldados das IDF (Forças de Defesa de Israel) nos túneis sob os hospitais dizimados, empunhando armas e exemplares do Mein Kampf para responder às horríveis imagens em tempo real de bebês prematuros morrendo. Embora estas sejam tentativas de justificar o assassinato de profissionais de saúde e dos pacientes que estavam tratando, elas não resistem ao Direito Internacional Humanitário. Israel tem um histórico documentado de bombardeios de hospitais e outras instalações de tratamento de saúde em Gaza, e qualquer médico versado em qualidade e segurança de tratamento de pacientes insistiria que espaços subterrâneos foram construídos para conduzir o tratamento de pacientes longe dos estilhaços desses ataques aéreos.
“A todo o custo”
Em todo o mundo, no dia 11 de novembro, a Associação Médica Americana (AMA) realizou uma reunião de sua Câmara de Delegados enquanto ocorriam estes acontecimentos terríveis. Quando mais de 135 estudantes de medicina e médicos em formação na AMA tentaram discutir uma resolução que apelava a um cessar-fogo em Gaza, a direção da AMA os impediu. Aqueles que apoiaram a iniciativa afirmaram que houve “um esforço coordenado na reunião nacional para impedir a resolução, com o presidente da assembleia não permitindo que os delegados tivessem 90 segundos para falar sobre a resolução”. A AMA disse que esta resolução “não era relevante para a defesa de direitos”. “A AMA”, escreveu o pessoal médico que elaborou a resolução, “tem a responsabilidade de defender o bem-estar dos profissionais de saúde e minimizar o sofrimento humano, e é evidente que estes valores não estão sendo defendidos por alguns dos médicos mais influentes do país, nem o processo democrático está sendo respeitado”.
Isto contrasta fortemente com a posição oficial da AMA sobre a Ucrânia em 2022, quando ela jogou seu peso institucional por um cessar-fogo imediato e pelo fim dos ataques russos aos profissionais e instalações de saúde, enfatizando que as leis internacionais humanitárias e de direitos humanos devem ser cumpridas e as vidas de civis e médicos devem ser protegidas “a todo custo”.
Toda vida é sagrada
Poucos dias antes da reunião da Câmara dos Delegados, a principal revista da AMA, o Journal of the AMA (JAMA), publicou um artigo do Dr. Matthew Wynia, do Centro de Bioética e Humanidades da Universidade do Colorado e copresidente do Grupo de Trabalho da AMA sobre Verdade, Reconciliação, Cura e Transformação. O seu artigo “Health Professionals and War in the Middle East” (Profissionais de Saúde e a Guerra no Oriente Médio) apresenta três pontos irrefutáveis:
– Primeiro, os profissionais de saúde devem condenar a desumanização e os atos de genocídio.
– Em segundo lugar, os profissionais de saúde devem se opor vigorosamente tanto ao antissemitismo quanto ao ódio anti-muçulmano.
– Em terceiro lugar, os profissionais de saúde têm a responsabilidade especial de se manifestar contra certos crimes de guerra.
Concordamos com todos estes três pontos, incluindo o sentimento final do Dr. Wynia: “Em tempo de guerra, a nossa profissão deve continuar sendo a encarnação viva das injunções religiosas de tratar cada vida como sagrada, porque salvar uma única vida é salvar um mundo inteiro”.
O artigo do Dr. Wynia no JAMA, publicado alguns dias antes da reunião da AMA, sugere que teria sido indiscutível para a AMA aprovar uma resolução pedindo um cessar-fogo. Afinal, um cessar-fogo permitiria que os colegas médicos fizessem o seu trabalho sem medo dos bombardeios, acabaria com a morte de civis e permitiria a investigação dos ataques a instalações médicas e a profissionais de saúde. Se “toda vida é sagrada”, então um corpo de médicos deve se unir ao apelo para evitar qualquer perda de vida inocente. Mas não foi isso que aconteceu na reunião da AMA, cuja recusa em abrir a discussão sobre uma resolução de cessar-fogo sugere a abordagem oposta.
Uma leitura mais atenta ao artigo do Dr. Wynia mostra por que razão os profissionais de saúde decidiram não permitir sequer a discussão de um cessar-fogo em Gaza. “Profissionais de saúde de boa vontade e igualmente comprometidos com os direitos humanos têm opiniões diferentes sobre estas questões, o que reflete a natureza das questões”, escreve o Dr. Wynia. Introduzindo o relativismo moral na discussão, o Dr. Wynia permite ambiguidade onde não há nenhuma – nenhuma em termos legais e nenhuma em termos morais. Como é que os “profissionais de saúde de boa vontade” podem discordar sobre o ataque a trabalhadores de saúde e instituições médicas ou, de fato, como é que podem discordar sobre a morte de civis, incluindo os feridos e enfermos nos hospitais? Há espaço para debate sobre o que deve ser feito quando nos confrontamos com as provas de ataques a trabalhadores de saúde e instituições médicas, mas não há ambiguidade quanto à sua ilegalidade e imoralidade.
Morrendo um por um
Nas últimas semanas, Israel tem divulgado propaganda sobre a presença do quartel-general do Hamas sob um dos hospitais de Gaza, o Al-Shifa, para criar um espaço de confusão moral em torno da proteção dos profissionais de saúde e das instalações de saúde. No dia 5 de novembro, um grupo de quase 100 médicos em Israel divulgou uma carta apelando à aniquilação de todos os hospitais de Gaza, como que para sancionar o ataque direto das IDF aos espaços mais sagrados da nossa profissão. Em 11 de novembro, Israel também bombardeou o complexo hospitalar de Al-Shifa, onde se encontravam 1700 doentes e feridos e cerca de 50 mil pessoas deslocadas e abrigadas em seu pátio, segundo o Dr. Ghassan Abu Sitta, um cirurgião que estava no local naquele momento. Os ataques israelenses destruíram completamente o hospital. Com a falta de eletricidade no Al-Shifa, 39 recém-nascidos em incubadoras estão agora embrulhados em cobertores, morrendo um por um. Talvez fosse a isto que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu se referisse quando falou nos “filhos das trevas”.
O ataque de Israel aos serviços de saúde de Gaza é um ataque à alma da profissão médica, um ataque protegido pela JAMA e apoiado pela AMA através de um silêncio forçado. A razão pela qual a Associação Médica Americana pôde fazer uma declaração tão contundente sobre a Ucrânia, mas quer permanecer em silêncio sobre a Palestina, levanta uma questão importante: será que a AMA defende apenas as causas delineadas pelo Departamento de Estado dos EUA ou será que estas são as opiniões dos médicos que compõem a associação?
Este artigo foi produzido para a Globetrotter e traduzido por Raul Chiliani para Opera Mundi.
Vijay Prashad é um historiador, editor e jornalista indiano. É membro da redação e correspondente-chefe da Globetrotter. É editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Instituto Tricontinental de Investigação Social. É autor de mais de 20 livros, entre eles The Darker Nations e The Poorer Nations. Seus últimos livros são Struggle Makes Us Human: Learning from Movements for Socialism e The Withdrawal: Iraq, Libya, Afghanistan, and the Fragility of U.S. Power (com Noam Chomsky).
Rupa Marya MD, é professora de medicina na Universidade da Califórnia, em São Francisco, co-fundadora da Do No Harm Coalition, e coautora, com Raj Patel, de Inflamed: Deep Medicine and the Anatomy of Injustice (Medicina profunda e a anatomia da injustiça).
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