Por ser um negro, penso como um negro. Minha raça, minha pesquisa e meu dia a dia como um sanitarista negro determina minha compreensão de como a prestação dos serviços de saneamento opera numa sociedade marcada por uma profunda desigualdade racial e de classe.
Na condição de negro, senti e sinto na pele o racismo entranhado nas estruturas da gestão do saneamento. Numa sociedade racista, a segregação espaço racial é algo visível. Presenciei e presencio o descaso da gestão pública para com as áreas tipicamente habitadas por negros e grupos marginalizados. Um rápido olhar pelas periferias de Natal e irá identificar esgoto a céu aberto, lixões espalhados por todos os cantos, irregularidade no abastecimento de água, ruas sem calçamento e drenagem. Enquanto isso bairros tipicamente ocupados por brancos de classe média alta ostentam uma situação favorável de salubridade.
Um sanitarista engajado na superação das desigualdades sociais, em particular, na promoção do saneamento, procura formular políticas, programas, projetos e ações que promovam o desenvolvimento social daqueles grupos marginalizados.
Pretendo neste breve ensaio criticar uma perspectiva interpretativa que entende que grupos socialmente marginalizados e historicamente subalternizados sejam tratados de forma equivalente aos historicamente dominantes. Que as áreas menos assistidas com serviços de saneamento devem ser tratadas de forma igual, ou ainda que a análise técnica de situações/problemas deva manter uma neutralidade. Este ensaio teórico procura ainda oferecer uma interpretação alternativa às narrativas presentes no discurso neoliberal de privatização do saneamento.
O estranhamento ou a recusa da relação existente entre raça e condições precárias de saneamento demonstra o quanto fomos ensinados a ignorar esta relação, reforçando assim o racismo. Aqueles que acreditam que não há racismo no Brasil, respaldados por pensadores brancos brasileiros do início do Século XX, os quais propagaram a famigerada Democracia Racial, vão sempre se perguntar por que se deve analisar e considerar nas pesquisas e estudos de saneamento as questões raciais?
Ao negar o caráter racial na análise do déficit de saneamento do Brasil o pesquisador impede uma investigação mais aprofundada da origem do problema.
Expurgar raça da equação causal só contribui para a manutenção da negação dos serviços de saneamento para estas populações. É dever de qualquer cientista, que dedica seus estudos e pesquisa saneamento no Brasil, considerar a temática raça como um componente importante na análise. Sem esse recorte racial não seremos capazes de compreender a realidade de exclusão no Brasil, seja de saneamento ou de qualquer outra forma de negação de políticas públicas.
Por outro lado, focar a análise dos baixos índices de atendimento somente pela ótica da renda, como vem sendo feito na academia e muito bem utilizado pelos propagadores do liberalismo, mascara o caráter racista que está por trás da negação dessas políticas públicas ao povo preto.
É preciso que se diga: As periferias brasileiras e seus altos índices de insalubridade ambiental, violência e desemprego são produto do descaso de um Estado estruturalmente racista, o qual destina pouquíssimos (ou nenhum) recursos do orçamento, àquelas áreas habitadas por uma maioria negra. Ao contingenciar recursos e políticas públicas nestas áreas, o Estado produz um espaço de exclusão social generalizado. Então não esperem um paraíso social.
O impacto da negação dos serviços de saneamento vai mais além do que a questão da salubridade ambiental. O abandono do Estado, em não promover políticas públicas de saneamento, gera reflexos negativos para a economia local, que por sua vez, pode gerar situações de criminalidade, por exemplo. Um bairro repleto de lixo nas ruas, esgoto escoando pelas valas e sarjetas, áreas que alagam com a menor chuva e que a irregularidade no abastecimento é algo rotineiro, impede qualquer projeto de economia local. Quem iria investir num bairro insalubre? Um bairro ou uma comunidade sem atividades comerciais, sem emprego e sem renda, está propenso à criminalidade. Ao negar saneamento a estas populações só se reforça o grau de exclusão a que estes grupos já são submetidos.
Com a aprovação da nova Lei do Saneamento (14.026/2020), que prevê a substituição de empresas públicas por empresas privadas, é dado início a uma nova era da prestação dos serviços de saneamento básico no Brasil.
Entusiastas da causa enxergam nesse novo modelo de prestação privada de serviço de água e esgoto a solução para os baixos índices de atendimento existentes.
Essa nova etapa da história do Brasil, iniciada com a derrocada das forças progressistas e a vitória do atual Presidente da República, está sendo marcada pela negativa declarada do Estado de investimento em áreas estratégicas, para a superação das desigualdades sociais e raciais, em particular na área do saneamento. A nova onda (talvez um tsunami) liberal, surgida com a crise econômica mundial de 2008, veio para desmontar tudo aquilo que estava sendo construído com muita luta e resistência pelas populações marginalizadas do Brasil.
Presenciamos nos últimos quatro anos ataques de políticas neoliberais em direitos trabalhistas, bem como nos orçamentos da saúde e da educação, com a lei do teto de gastos, e ainda na reforma trabalhista, a qual dificulta a aposentadoria de várias categorias de trabalhadores. O empobrecimento da população, que já registra altos índices, se agravará com a nova lei da privatização do saneamento, na medida em que será inevitável o aumento do valor das tarifas e o desinteresse de investimentos em áreas da cidade que não trarão retorno financeiro, como as comunidades carentes.
Definitivamente, a eliminação do racismo nas estruturas da sociedade brasileira não será por vias liberais. Fragilizar o Estado é fragilizar o combate ao racismo. Fragilizar políticas estatais e instrumentos de combate à pobreza, de combate ao racismo, de combate a desigualdade racial, de gênero e social é a marca do liberalismo, que se faz presente no mundo.
Não custa nada lembrar aos adeptos do liberalismo que estes direitos estão
garantidos na nossa Constituição, em particular o Art. 3º da nossa Constituição, nos incisos III e IV.
Art. 3º
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III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Sendo assim, toda e qualquer ação de política de saneamento deve levar em consideração a promoção da igualdade de status social. Todo e qualquer recurso destinado ao saneamento básico deve levar em consideração a superação das condições precárias de salubridade ambiental. O foco das políticas de saneamento deve ser as áreas mais carentes, aquelas onde os índices de saneamento são os mais baixos e não as áreas mais ricas, predominantemente ocupadas por brancos.
A luta pela igualdade de direitos, pela igualdade racial, deve partir de um princípio que tem como propósito a eliminação de processos de marginalização social do povo preto. Quando se destina grandes volumes de recursos em áreas da cidade com infraestrutura já consolidada e ignoram-se as áreas periféricas, áreas conhecidamente deficitárias, reforça o grau de marginalização dessas áreas da cidade, bem como reflete o grau de racismo estrutural presente nessa tomada de decisão.
Cabe ao Estado e não à iniciativa privada promover as transformações sociais. É a partir de políticas públicas que grupos sociais racializados são incluídos em ações de promoção à superação de suas condições de vida humilhantes. Não é pela iniciativa privada que virá o milagre da igualdade racial. Pelo contrário. No atual estágio do capitalismo, a interferência do neoliberalismo nas políticas públicas tem aumentado significativamente, gerando retrocesso civilizacional e aprofundando as desigualdades.
Apoiar esse novo marco do saneamento é contribuir com políticas racistas, é contribuir com a exclusão social do povo preto, é contribuir para agravar ainda mais a triste realidade do saneamento no Brasil.
A classe média se engana ao achar que privatizar os serviços de saneamento irá melhorar a qualidade dos serviços. Ora vejamos: Como não será possível atender a todos, o número de usuários diminuirá, fazendo com que a tarifa, agora, seja rateada entre poucos. Além do que agravará a saúde da população carente, elevando os gastos com saúde.
Não se pode negar que há uma dívida histórica do Estado para com a população negra. O Brasil escravizou os negros por 350 anos. Gerou riqueza para sua elite, para a nobreza e contribuiu para a acumulação primitiva do capital, o qual foi fundamental para a Revolução Industrial da Inglaterra. Com o fim da escravidão os ex-escravizados foram abandonados à própria sorte. Esse descaso se reflete até hoje com as péssimas condições de salubridade vividas pelas periferias de todo o Brasil. Ignorar essa história é pensar como branco. Homem branco meritocrata, que não consegue se livrar de um racismo estrutural que corrói sua alma. Quando falo branco não me refiro a todos os brancos, falo daqueles embevecidos de branquitude, de universalidade, de superioridade, que acreditam numa supremacia racial e exercitam todo ódio aos não brancos.
Não dá para ser antirracista e ser a favor da privatização do saneamento. Não basta dizer que não é racista e ser a favor do enfraquecimento do Estado. Combater o racismo institucional e estrutural é incompatível com o discurso liberal. Fala que é um ativista antirracista, mas apóia e defende a intervenção privada em áreas estratégicas para a superação das desigualdades, como o saneamento básico, não dá né?
Portanto, nossa bandeira de luta mais urgente é banir e eliminar qualquer iniciativa liberal em áreas estratégicas de superação das desigualdades sociais e raciais. Negar qualquer proposta governamental que leve em consideração políticas liberais ou neoliberais (não vejo diferença) de empobrecimento dos trabalhadores e das populações negras que vivem em condições precárias de saneamento.
Não ao racismo, não à privatização do Saneamento Básico!!!