Ao matar, ele se fortalece
Não derrotaremos Bolsonaro sem derrotar o bolsonarismo. Nesse sentido, tenho pensado que a estratégia de luta a esse governo não deve ser para derrubá-lo, mas para dissolvê-lo, desconstruí-lo, desgastá-lo. Bolsonaro precisará ficar tempo suficiente para fazer o que se recusou a fazer na campanha: falar. Precisa falar para escancarar sua estupidez e incapacidade. E a sociedade brasileira também precisará de tempo para falar, a fim de expor e purgar todo o discurso fascista e de ódio que brotou por aqui nos últimos tempos.
Diante de tanto retrocesso, barbárie e imbecilidade, tenho me sentido sufocada, aviltada, enojada, como que descendo num poço que parece nunca chegar ao fundo. Ficava pensando que teríamos que subir tudo de novo, a fim de sair dessa situação, e isso me dava desespero, porque sentia a luz da saída cada vez mais distante. Mas, nos últimos dias, por ocasião de um sonho, comecei a pensar que nossa saída talvez não seja por cima, mas por baixo, pelo subterrâneo. Acho que vamos ter é que cavar mais até achar a rede de esgoto e mergulhar nela pra sair. Para vencer o discurso bolsonarista, precisaremos mergulhar nele.
Mas, obviamente que, enquanto não cavamos fundo o suficiente, será necessário sobreviver a esse discurso que mata. Precisaremos, portanto, de pequenas rotas de fuga e de guetos que nos permitam nos fortalecer entre pares – como fizeram os quilombos. Precisaremos cuidar uns dos outros em grupos menores, fazer política miúda e esperar a melhor hora.
Não nos esqueçamos que o bolsonarismo foi inventado, construído e fortalecido a partir do antipetismo. Criar um inimigo comum, já dizia Freud em 1923, é a estratégia mais fácil e simples para se liderar um grupo. Isso faz do governo Bolsonaro um governo essencialmente paranoico, e se assim for, quaisquer grandes movimentos para confrontá-lo e derrubá-lo só irá fortalecê-lo em sua estrutura paranoica. Confrontar diretamente um discurso paranoico só o reforça, pois torna você apenas mais um inimigo a ser eliminado. E como na paranoia não há racionalidade que possa sustentar o debate, o paranoico não tem problemas em crer que a única saída é mesmo eliminar o outro. Vide o nazismo.
Assim, tenho pensado que o enfrentamento a esse governo não será efetivo por meio de grandes movimentos explícitos ou unificados. Precisamos agir em várias frentes diversificadas, nas pequenas frestas e aberturas, nos meandros, no subsolo, na boca miúda. Precisamos de escárnio, deboche e denúncia. Precisamos escapar do confronto aberto que ameaça nossa vida e apontar os furos de um modo possível; Jean Wyllis e Marcia Tiburi estão corretos nas suas estratégias. Bate boca e lacração besta no Twitter sim, se é de lá que Bolsonaro e sua prole se dispõem a governar como se fossem a família real. A meu ver, Haddad e José de Abreu estão corretos nos seus confrontos
aparentemente bestas com a família Bolsonaro, nas redes sociais.
Já está claro que o governo não tem compromisso com a racionalidade, com a história, com a razoabilidade, com o debate político ou com a democracia, ele apenas espera se sustentar no poder com um percentual pequeno de aliados, igualmente paranoicos e limitados politicamente, o resto ele abaterá pela força, pelo medo ou pela bala. Precisaremos de estratégias não convencionais para lidar com esse governo; será preciso desconstruí-lo sem pressa, fazê-lo definhar. E eu suponho que, pelo voto, será a maneira mais interessante e eficaz de vencê-lo sem riscos de retorno do recalcado.
Até as próximas eleições, teremos que desvelar tudo que vínhamos varrendo pra debaixo do tapete e que propiciou a ascensão de Bolsonaro. Até lá, tudo o que pudermos fazer para obrigar o governo a falar e a se expor, será uma boa estratégia. Política é palavra. E política é exatamente o avesso do que Bolsonaro sempre pretendeu fazer. Quanto mais ele falar e se expor (ainda que às custas da nossa vergonha diária), quanto mais ele tentar explicar ou justificar suas mancadas e bizarrices, mais fraco se tornará seu discurso.
É importante que se entenda uma coisa: O discurso paranoico se desmonta quando precisa usar a palavra e se fortalece quando é convocado a usar a força. Por mais bizarro e estranho que possa parecer, Bolsonaro se fortalece ao disparar 80 tiros contra um cidadão comum e enfraquece quando é alvo de deboche por publicar golden shower.
Não estamos lidando com uma situação política comum, por isso, intuo que o embate político tradicional não funcionará nesse caso. A paranoia não se combate, se desconstrói devagar, fazendo-a falar e evidenciar suas contradições. Minha aposta é que sejamos como cupins silenciosos e persistentes a roer uma estrutura de madeira.
A palavra faz buraco.
—
A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.