O ajuste fiscal de Haddad, ou ainda: como implodir a esquerda brasileira e permitir o retorno do neofascismo

As classes dominantes no comando, seja o latifundiário agrícola, o agrobusiness ou a burguesia financeira, que sempre ocuparam o poder e agiram em detrimento do trabalhador, alcançaram algo inédito em um governo de esquerda, o feito de controlar sem concessões. Confira por quê.

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Por Mariella Pittari, Blog da Boitempo.

O ano mal começou, porém, as medidas de ajuste fiscal representam um duro golpe ao assalariado brasileiro. Dentre as medidas a afligir o largo espectro de assalariados estão o aumento da taxa Selic – que alcançará 15% em março deste ano, conforme projeções do próprio BACEN –; o reajuste do salário mínimo, que receberá um novo freio de contenção; além da redução do abono PIS/PASEP às pessoas que recebem até dois salários mínimos. Para compor o quadro de redução do poder de compra do trabalhador em senso lato, os requisitos para o gozo do BPC (benefício de prestação continuada) tornam-se mais rígidos, em um cenário no qual a inflação real não apresenta sinais de queda, sobretudo para as pessoas com menor poder aquisitivo. Tais medidas implicam em uma tentativa governamental alinhada à classe dominante de reduzir o déficit primário brasileiro a zero, sem que com isso seja discutido o percentual dos gastos públicos dedicados ao serviço da dívida.

As classes dominantes no comando, seja o latifundiário agrícola, o agrobusiness ou a burguesia financeira, que sempre ocuparam o poder e agiram em detrimento do trabalhador, alcançaram algo inédito em um governo de esquerda, o feito de controlar sem concessões. Os próximos parágrafos serão dedicados a esmiuçar em que consistiram as recentes mudanças, parte reflexo do novo teto de gastos, bem como outras leis e medidas que possuem por resultado último ora diminuir a participação econômica e o poder de compra da população, ora estrangular direitos sociais e transferir renda ao topo da pirâmide.

Conforme será demonstrado em uma análise mais profunda da austeridade, o uso do discurso de ampliação da classe média, endossado pela mídia e pelo governo, tem por intuito esvaziar o verdadeiro contraste de forças presente no país e criar um contingente populacional apático e incapaz de se mobilizar para derrubar os pilares trabalhistas, monetários e fiscais da austeridade.1 Alinhado aos ganhos sem precedentes dos quais desfruta o capital especulativo, pautados em um uma política monetária e fiscal que serve aos interesses da classe dominante, a pauta austeridade erode o último bastião de confiança que o povo possuía na figura histórica do presidente Lula.

O intuito do presente artigo consiste em avaliar a implementação de medidas econômicas marcadamente neoliberais e demonstrar como a política de austeridade contra o povo trabalhador é nociva às bases de sustentação do governo. Tal movimento de perda de sustentação desencadeará a impreterível mudança de inclinação política em direção aos setores autoritários e neofascistas da política,2 que não obstante fazerem uso da mesma política econômica, e se aproveitam da tônica de ataque direto ao Estado para erodir a confiança da população nas aspirações democráticas e emancipatórias do povo. Assim, o ataque que parte de dentro do próprio governo no sentido de rever as conquistas históricas em favor do trabalhador, como o aumento real do salário mínimo, implicam em grave ameaça às conquistas da recente democracia brasileira.

Matar dois coelhos com uma cajadada só: recrudescem as regras de concessão do BPC e o aumento do salário mínimo resta condicionado ao “novo calabouço” fiscal

A mudança legislativa trazida pela Lei nº 15.077/2024 substitui o percentual de aumento do salário mínimo do incremento do PIB aos parâmetros do arcabouço fiscal. A justificativa de fundo para tal mudança baseia-se na economia que a diminuição do valor anteriormente projetado trará aos cofres públicos, pois o salário mínimo condiciona o valor de pensões, do BPC, auxílios e outros instrumentos através dos quais o governo distribui renda. Aliado ao enrijecimento dos requisitos para concessão do BPC constata-se a clara tendência de ser responsável do ponto de vista fiscal, empobrecendo o trabalhador. Talvez a frequência com a qual se ouça falar na necessidade de cortar gastos, de recrudescer a política para a esfera da escassez impeça que o quadro real se apresente, aquele em que a vida do trabalhador se torna nua,3 precária, desprezível. Aos que têm fome, o mínimo; aos que se alimentam de ideologia, a alienação completa. Um contingente da cidade que vive alijado à categoria da sobrevivência na classe média, com uma renda a partir de R$ 3.400, recebeu como prêmio de consolação pertencer a tal grupo.4 É o empreendedor de si mesmo, uberizado e precarizado, cujo acréscimo na renda corresponde à completa erosão dos seus direitos trabalhistas e previdenciários.

Em contrapartida, aos que nunca participarão do mercado de trabalho de maneira formal ou autônoma, resta esperar que seus parcos anos de contribuição caiam no vácuo do não-direito, momento em que o BPC se transforma na aposentadoria de milhões de trabalhadores que nunca alcançarão os requisitos para Previdência. As donas Marias, os seus Josés e Joãos, irão recorrer à Providência do vereador solícito que “aposenta” os trabalhadores com o BPC. Tal realidade não pode ser ignorada e percebida com as lentes do mercado, que chantageia o país com agências de risco ameaçando cada centavo “desperdiçado”.

Para o mercado, o gasto social ideal é zero. O intuito dos mercados consiste em deslocar serviços da esfera pública à privada, inserindo-os nas dinâmicas do mercado, reduzindo o Estado ao meio através do qual a renda do trabalhador seja transferida à classe dominante. Um país que conviveu por séculos com a escravidão e despreza o componente humano do trabalho não se ressentiu em converter a vida humana em propriedade quando isso servia à acumulação do capital. Tampouco se ressentiram em torturar e matar dissidentes políticos quando tal era a tônica para se alinhar e permanecer na classe dominante. Não serão os gastos sociais e de redistribuição de renda a servir de óbice para a satisfação dos interesses dos poucos que se beneficiam da transferência do orçamento ao capital especulativo.

Enquanto o Estado burguês serviu aos objetivos do mercado, criando diplomas legislativos de índole liberal e consolidando uma ordem na qual a troca era certa e previsível, o Estado satisfez às aspirações da nascente burguesia, a saber: consolidar a propriedade espoliada, chancelar trocas desiguais e impor uma pauta mínima de direitos para assegurar a máxima obediência do trabalhador. O modelo de Estado surgido no pós-guerra para rivalizar com o bloco soviético cede espaço ao neofascismo, que já não oferece mais nada em contrapartida à aniquilação dos direitos dos trabalhadores.

Portanto, no estágio avançado em que o capitalismo se encontra, possuir um governo cujo programa social é voltado à ideia do valor do trabalho, mas que ignorando seus propósitos se curva aos interesses mais espúrios do mercado, não representa somente uma frustração momentânea. Representa também a erosão da razão mesma de confiar no mandato que foi outorgado ao representante para agir em nome do povo. A ruptura do pacto de confiança depositada no voto popular, que confere ao governo sua missão institucional, desencadeia o inevitável questionamento de quais segmentos da política ainda servem ao povo.

O pobre, arrancado à força do orçamento, verá o recuo de conquistas sedimentadas – como a que ampara o amplo acesso ao benefício de prestação continuada e o reajuste do salário mínimo por critério consoante ao aumento do poder de compra – compor parte da barganha da Faria Lima em troca da alma de um governo que não esconde mais ser favorável aos seus anseios. Enquanto o imposto de renda sobre lucros e dividendos torna-se uma quimera no horizonte de atrasos do Brasil, celebra-se a isenção para quem ganha até R$ 5.000 até 2026. Não seria o limite de isenção prova incontestável de pobreza? Se a renda de até R$ 5.000 não deve ser tributada, a razão de fundo para tanto é não haver razão para comprometer renda de subsistência com o pagamento de impostos. Diante de tal contraste como seria possível entender que na classe média encontra-se já quem percebe R$ 3.400?

Em tais premissas, evidencia-se que aquele que deveria ser um governo comprometido com a redistribuição e com o investimento público, que propulsione o país para um menor grau de desigualdade, transformou-se em caixa de ressonância do mercado. O momento de austeridade converte-se em política perene, irreversível. O objetivo do déficit publico primário tendente a zero se constitui na política da exceção-regra. Sob a premissa de que a taxa de juros controla a inflação, abre-se a via para toda política fiscal reacionária, uma ortodoxia imutável e sem confronto. Ninguém ousa questionar a razão pela qual o Brasil necessita comprometer mais de 40% do orçamento com o pagamento de juros da dívida, porém o problema põe-se em R$ 6,00 que o trabalhador deixará de receber no salário mínimo. Ao que parece, o único instrumento à disposição do economista para conter a inflação é uma guilhotina monetarista, que decepa a cabeça do trabalhador encarecendo seu crédito e poder de compra. Todos os outros instrumentos à disposição do economista desaparecem diante da necessidade incontrolável de satisfazer o mercado, encarecendo o crédito e diminuindo o poder de compra.

Emende-se a constituição e dai aos bancos o que é dos bancos

Hoje apenas siglas desprovidas de um significado mais profundo, os programas PIS-PASEP serviam à integração social do trabalhador ou servidor público. Ou seja, compunham, através de um fundo, as perdas advindas com o fim da estabilidade trabalhista. Contudo, a disciplina de quem irá receber tais parcelas será gradualmente limitada, tendo sido necessária a aprovação da Emenda Constitucional nº 135 para tanto. Toda a disposição do governo e das bancadas de apoio encontra-se em aumentar a disponibilidade de despesas discricionárias. Assim, percebe-se que o constituinte, que já antecipava as minorias eventuais no poder, criou diversos dispositivos que vinculavam a despesa pública. Gradualmente, com o apoio que o governo recebe de setores simpáticos à esquerda, a margem de manobra converteu-se em expediente espúrio voltado à exclusiva satisfação dos que sempre ocuparam as rodas de poder.

Como a saudosa professora Maria da Conceição Tavares dizia em suas aulas,5 pobre precisa fazer política, porque o rico faz política nos almoços das sextas-feiras.6 Não existe canal para o trabalhador ser ouvido e representado quando ele se encontra na condução lotada e, ao chegar ao trabalho, recebe a alcunha de colaborador. Os vértices foram invertidos e ignorados. Os economistas da governabilidade esqueceram-se que o trabalhador se ilustra naquele indivíduo do qual se extrai a mais-valia e, retroagindo-se alguns poucos anos ao passado, era esvaziado na acepção de propriedade. O compromisso do Estado Democrático Social não está em converter o orçamento nas aspirações de ganho do especulador financeiro, que propugna pela austeridade ao trabalhador em favor da ostentação do capital.

O momento que o mundo e o Brasil vivem é sem precedentes, o compromisso capital-trabalho não foi rompido – pois ele nunca existiu –, porém, o modo pelo qual o trabalhado é pilhado, espoliado, despojado, jamais se apresentou de forma tão escancarada.

A direita neofascista conquista o mundo: sombras do fascismo e do nazismo

Para os movimentos de luta pela emancipação da classe trabalhadora, o balanço de políticas regressivas endossadas pela esquerda do neoliberalismo progressista é sobremaneira nociva, não apenas do ponto de vista econômico, mas sobretudo no espectro político. A capacidade da extrema direita em articular um discurso de ódio baseado na eleição dos falsos culpados é bem demonstrada através de diversos períodos históricos. Explicar Kalecki ao povo será mais difícil do que aplicar suas noções na economia.

A esquerda intelectual carece de tal capacidade de arregimentar em bases argumentativas, porém, poderia utilizar a massiva presença nos círculos do governo para transformar teorias em melhoria das condições de vida. Não é sem propósito que o capital pressiona o governo ao suicídio, quando artificialmente infla o dólar e diminui a credibilidade do país perante as agências de crédito. Concluindo-se o presente mandato do presidente Lula desempenhando o papel ao qual se propôs, qual seja, de diminuir as animosidades e criar a aliança inimaginável PT-PSB,7 o caminho está pavimentado para a ascensão de uma figura tão ou mais ameaçadora para o povo e os movimentos sociais do que a representada por Bolsonaro. Estados Unidos, Itália e Argentina já anteciparam o cenário que, ao que tudo indica, será reproduzido no Brasil. Apesar dos esforços de conciliar o inconciliável, a imagem de um ministro da Economia do PT que transmita confiança à classe dominante do país ao preço de sacrificar o trabalhador não conduz aos horizontes mais promissores para a democracia.

Notas

  1. Mattei, Clara. A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, Boitempo, 2023. ??
  2. Allen, Nicolas. Martin, Cortés e Traverso, Enzo. “Cosa Significa Fascismo Nel Ventunesimo Secolo?” Jacobin Italia, 12 Feb. 2019. Acesso 15 de Janeiro de 2025. ??
  3. Agamben, Giorgio. Estado de Exceção, Boitempo, 2004. ??
  4. Fernando Nakagawa: Brasil volta a ser país de classe médiaCNN Brasil. Acesso 14 Janeiro de 2025. ??
  5. Lula, Haddad, Mercadante e mais: veja repercussão da morte de Maria da Conceição TavaresExame. Acesso 14 de janeiro de 2025. ??
  6. Em almoço com banqueiros, Haddad diz que pode discutir novos cortes se necessárioFolha de S.Paulo. Acesso 14 de janeiro de 2025. ??
  7. Cabe uma alusão ao PSDB e ao MDB. ??

Mariella Pittari Merkel é doutoranda em direito comparado pela Università Degli studi di Torino. Junto com a autora, Clara Mattei, assina a “Nota à edição brasileira” de A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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