O Afeganistão e a rota da CIA para a heroína

Nesta Guerra do Ópio do século XXI, as colheitas do Afeganistão estão basicamente a alimentar o mercado da heroína não só da Rússia e do Irã como, especialmente, o dos EUA

Ao contrário da percepção predominante no Ocidente, não se trata de uma operação dos Talibãs afegãos. As perguntas-chave – nunca formuladas nos círculos da OTAN – são quem compra as colheitas de ópio, quem as refina transformando-as em heroína, quem controla as rotas de exportação e, finalmente, quem as vende para a obtenção de lucros gigantescos quando comparados aos impostos cobrados localmente pelos Talibãs.

A narrativa hegemônica diz que Washington bombardeou o Afeganistão em 2001 em “autodefesa” após o 11/Set; instalou ali um governo “democrático” e nos 16 anos seguintes não se retirou porque este seria um ponto-chave na Guerra Global ao Terror (GGT), contra a Al-Qaeda e os Talibãs.

Washington gastou mais de US$100 mil milhões na reconstrução afegã. E, alegadamente, US$8,4 mil milhões em “programas contra narcóticos”. A Operação Liberdade Duradoura (Enduring Freedom) – juntamente com a “libertação” do Iraque – custou uns espantosos vários milhões de milhões (trilhões) de dólares. E ainda assim a rota da heroína, a partir do Afeganistão ocupado, próspera . Cui bono?

Tem um SIGAR

Um exaustivo Afghanistan Opium Survey pormenoriza a ascensão firme da produção de ópio afegão, bem como o espalhamento das áreas de produção. “Em 2016 a produção de ópio aumentou aproximadamente 25 vezes em relação aos seus níveis de 2001, de 185 toneladas em 2001 para 4899 toneladas em 2016”.

Outro relatório exaustivo emitido pelo delicioso acrónimo de SIGAR (Special Inspector General for Afghanistan Reconstruction) insinua mesmo – discretamente – a conexão crucial: a Operação Liberdade Duradoura alimenta a epidemia de heroína nos EUA.

O Afeganistão está infestado de mercenários (contractors). Os números variam de 10 mil a dezenas de milhares. Militares e ex-militares podem ser razoavelmente apontados como os atores na rota da heroína – em muitos casos para lucro pessoal. Mas o argumento decisivo refere-se ao financiamento daquelas operações negras da inteligência estadunidense que não deveriam de modo algum cair sob o escrutínio do Congresso dos EUA.

Uma fonte de inteligência baseada no Golfo com vasta experiência no chamado “arco de instabilidade” do Pentágono conta a história da sua interação com um operacional de inteligência australiano que atuou no Afeganistão. “Isto foi cerca de 2011. Ele disse que entregou à US Army Intelligence e à CIA relatórios sobre o comércio de heroína afegã – de que comboios militares estadunidenses vindos de portos do Paquistão na sua viagem de regresso estavam a ser utilizados para despachar a heroína para fora do Afeganistão – grande parte dela como ópio primário – a fim de ser distribuída.

Ninguém respondeu

Ele então aproveitou uma reunião para encurralar o chefe de operações de inteligência do Exército e da CIA perguntando porque nenhuma ação fora tomada. A resposta foi que o objetivo dos EUA era ganhar os corações e mentes da população e dar-lhes as papoulas para plantar ganhava seus corações. Foi a seguir advertido que se levantasse esta questão outra vez seria devolvido à Austrália dentro de um saco mortuário (body bag)”.

A fonte é categórica: “operações externas da CIA são financiadas a partir destes lucros. A acusação de que os Talibãs estavam a utilizar o comércio de heroína para financiar suas operações era uma falsificação e uma forma de apontar a direção errada.

E isto traz-nos a uma razão chave para o presidente Trump atuar contra os seus instintos e aceitar uma nova escalada afegã: “Na tradição das guerras do ópio da pérfida Albion no século XIX, no qual o ópio pagava pelo chá e a seda da Índia e os impostos sobre estas importações de seda e chá financiavam a construção da poderosa British Navy que dominava os mares; a CIA construiu-se como o agente mais poderoso com base no trilhão de dólares do comércio de heroína.

É impossível para Trump ultrapassar esta situação pois ele não tem aliados a quem recorrer. Os militares estão a trabalhar junto com a CIA e portanto os oficiais que cercam Trump são inúteis.

Os exemplos passados abundam. O mais notório refere-se ao Triângulo Dourado durante a guerra do Vietnã, quando a CIA impôs um esquema alimentos-por-ópio às tribos Hmong do Laos – um esquema completo com uma refinaria de heroína na sede da CIA no norte do Laos e estabeleceu a nefanda Air América para exportar o ópio.

Toda esta história foi revelada na obra seminal do Prof. Alfred McCoy, The Politics of Heroin in Southeast Asia – que levou Langley à loucura.

Um equivalente contemporâneo seria um livro recente do jornalista italiano Enrico Piovesana que explica em pormenor a Nova Guerra do Ópio no Afeganistão.

O retorno da Air América

Uma fonte a inteligência paquistanesa com amplos contatos na área Pashtun/tribal aprofunda-se em território ainda mais incendiário. “De acordo com a nossa melhor informação a CIA trouxe seus apaniguados (proxies) da Al-Qaeda/Daesh para dentro do Afeganistão a fim de justificar as tropas americanas adicionais”. Isso é perfeitamente coerente com Trump a ser encurralado pelos seus generais.

E então, vem Moscou. Na semana passada o Ministério russo de Relações Exteriores denunciou duramente “combatentes estrangeiros” transferidos por “helicópteros desconhecidos” como sendo os perpetradores do massacre de xiitas Hazaras numa província do norte do Afeganistão. “Parece que o comando das forças da OTAN no controle dos céus afegãos se recusa teimosamente a notar estes incidentes”, afirma o Ministério.

O caso não pode ficar mais sério do que isso: Moscou a denunciar setores das forças armadas afegãs treinadas pelos EUA, lado a lado com a NATO, empenhados em operações encobertas de apoio a jihadistas. A inteligência russa tem indicado – discretamente – desde há algum tempo que a inteligência dos EUA está a patrocinar encobertamente o Daesh – também conhecido como “ISIS Khorasan” – no Afeganistão.

A inteligência russa está muitíssimo consciente do capítulo afegão no Novo Grande Jogo. Cidadãos russos são “danos colaterais” da rota da heroína afegã, tal como cidadãos americanos. O Ministério russo de Relações Exteriores está a rastrear quantas toneladas de produtos químicos estão a ser ilegalmente importados para dentro do Afeganistão a partir, dentre outros países, da “Itália, França e Holanda” e de como os EUA e a OTAN não estão a fazer absolutamente nada para interromper a rota da heroína.

Bem, a Air América, afinal de contas, nunca morreu. Ela apenas foi relocalizada, passou das selvas do Sudeste Asiático para as áridas encruzilhadas da Ásia Central e do Sul.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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