Por Mariana Correia Pinto.
Estava ainda em processo de digestão da despedida da sua biblioteca e acervo de arte decretada por “necessidade” quando, esta semana, uma outra notícia chegava para o entristecer. Fernando Fernandes soube por um jornalista do fim da Leitura, a livraria que fundou em 1958, ainda sob o nome de Divulgação, e que por quase 50 anos foi “espaço de resistência” e lugar de culto para quem gostava de livros. Desde 1999 que o “poeta do livro” está afastado do histórico espaço na baixa do Porto, mas a tristeza não se amansou por isso. “Está ali muito trabalho acumulado e agora fica destruído de um dia para o outro.”
Como noticiava o Jornal de Notícias desta sexta-feira, a livraria — incorporada no grupo Civilização em 2005 — decretou insolvência a 15 de Janeiro. Os quatro trabalhadores, com salários em atraso há coisa de um ano, esperam agora contacto do administrador de insolvência. Ao que o PÚBLICO apurou, a decisão vinha sendo arrastada há vários anos e “questões logísticas e de falta de liquidez” acabaram por decretar o veredicto final, que Pedro Moura Bessa, presidente da Administração do grupo editorial Civilização, não quis comentar.
Uma certa nostalgia, de um tempo que em breve deixará de ter rasto, vem crescendo nos últimos tempos em Fernando Fernandes. “As livrarias estão todas a desaparecer”, diz em tom de lamento. E para essa morte anunciada parece não haver antídoto possível. As “novas tecnologias” carregam alguma culpa, mas há raízes mais profundas no problema: “Isto está ligado ao desaparecimento de muitos livreiros, verdadeiros amantes de livros. O que existe agora, com raras excepções, são vendedores de livros.”
Muitos dos que vão parar ao sector “estão de passagem” — às vezes entre uma licenciatura e um mestrado, a fintar o desemprego nas suas áreas de formação — e “não sabem nada de nada”. Ainda há dias, o “sr. livro” pediu à mulher que aproveitasse uma saída de casa para comprar um exemplar que queria ler. Mas, no regresso, chegou com a indicação de que a obra não estava disponível. Fernando Fernandes pôs-se a caminho do espaço e, em pouco tempo, ele mesmo descobriu o que queria nas estantes. “É inadmissível que isto aconteça, muitas vezes é mesmo desinteresse”, lamenta.
Por não ver uma “renovação” no sector, di-lo sem hesitar, ainda que repleto de mágoa: “Livreiro é uma profissão em extinção.” Ao longo dos anos, antes de se reformar, integrou várias iniciativas que procuravam salvar o ofício, criando “a figura do livreiro”, conta. “Tentamos tudo, até criar um mestrado. Mas não houve sucesso.”
Muita da história da Leitura “está ainda por contar”, diz a aguçar o apetite para uma conversa que facilmente daria… um livro: “O que ali se passou conta parte da história da cidade.” No arquivo fotográfico guardado nas gavetas lá de casa, Fernandes guarda dezenas de imagens dos muitos nomes da literatura portuguesa que passaram pela sua casa, noutros tempos com duas entradas: a Rua José Falcão (a que ainda se mantém) e a Rua de Ceuta.
Aquilino Ribeiro, José Cardoso Pires, Virgílio Ferreira, Mário Sacramento, Ferreira de Castro. “Foram tantos”, comenta a puxar pela memória. Do autor de A Selva guarda, por exemplo, uma fotografia “tirada na garagem daquilo que veio a ser o [cinema] Nun’Álvares”. E de Aquilino e outros lembra-se bem das imensas filas que se formavam Rua de Ceuta abaixo para as sessões de lançamento dos livros. “Por esses anos, [década de 60], a Associação de Jornalistas [e Homens de Letras do Porto] fazia, depois das apresentações, colóquios dirigidos pelo Óscar Lopes.”
À livraria de Fernando Fernandes chegavam centenas de livros importados, numa altura em que a censura era fantasma constante. E ali ia quem buscava o que não se podia ler. Um dia, recorda, entrou-lhe pela porta um jornalista do Jornal de Notícias a pedir-lhe livros do García Lorca. Ele fitou-o e pediu-lhe que aguardasse uns minutos: “Fui ao sítio secreto e rapei de lá dois ou três livros do Lorca, um deles o Romanceiro Gitano”, conta. Foi como um acontecimento para aquele cliente. “Contou-me depois que, em homenagem àquele momento, passou a comprar um livro nesse dia todos os anos.” No fundo, resume, fazer parte daqueles meios “era uma forma de ser anti-salazarista”.
Mas também houve histórias de amor. Homens “entre os 35 e os 45 anos, idades de separação” depois do enamoramento amansado, confidenciavam-lhe as suas relações para lhe pedir ajuda depois: “Queriam que escolhesse o livro perfeito para oferecerem às mulheres.” “É óbvio que isto dá muito trabalho”, comenta, “mas não é essa também a magia da profissão?”