Por Evânia Reich, para Desacato.info.
Não há que se negar que vivemos em um mundo do absurdo. Não esperávamos por isso, e de repente fomos jogados literalmente nele.
O mito de Sísifo, em si mesmo, e o livro de Camus podem talvez nos lançar uma luz sobre esta ideia, em princípio tão obscura.
Sísifo é um personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a repetir eternamente a tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha. Pedra que rolava a cada vez que Sísifo estava quase chegando no topo. Sísifo poderia ter desistido ao perceber que seu esforço contínuo era em vão. A pedra rolava com uma força gravitacional resistível a qualquer tentativa humana.
Sísifo não abandona seu esforço apesar de saber que nunca conseguirá. Levar a pedra tinha sido o seu destino ditado pelos deuses. Incansável labuta que durou toda a sua vida.
Camus no seu livro com o mesmo título do mito vai em busca da compreensão de um sentido para o absurdo. O absurdo da própria vida. O homem nasce e cresce na conquista de uma coerência, de um sentido para sua própria vida. Mas, o mundo no qual ele vive não fornece absolutamente nenhuma resposta. Ele se encontra em um universo onde ele não compreende o seu sentido. Por que continuar levando a pedra se no final das contas sabemos que ela vai nos levar para o início da trajetória? Para que continuarmos a viver se sabemos que no final é a morte que nos espera? Onde está a saída para a labuta absurda do cotidiano quando sabemos que no final das contas nada vale a pena?
Em momentos de crise como esta parece que uma lucidez nos aflora: a mesma labuta de Sísifo nos percorre alma adentro. O que fazer e no que acreditar quando parece não haver mais saída?
Camus nos diz logo no início de seu livro. “Só existe um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar que a vida vale ou não a pena ser vivida é responder a questão fundamental da filosofia”. O autor se nega a permanecer nesta única solução do suicídio. E o homem que escapa ao suicídio é o próprio absurdo.
No entanto não estamos todos realmente conscientes desse viver no absurdo. Heidegger vai dizer que a única realidade é o estado de preocupação dos seres. Para o homem perdido no mundo e seus divertimentos essa preocupação é breve. Mas quando o medo se torna consciente de si mesmo, se torna angústia, a qual é condição perpétua de vida de todo homem lúcido.
Aqueles que se esquivam a suas angústias no desenfreado sem sentido da vida fecham os olhos para o próprio absurdo da vida. Vão ainda mais além. Param de pensar no mundo e no universo, e permanecem em suas vidinhas vãs e sem sentido.
O que resta ao homem do absurdo, aquele que tem consciência plena que no final da caminhada árdua só lhe resta a morte a sua espera? Uma esperança? Não há esperança para algo inelutável. Apesar que muitos agem como se fossem imortais.
Quando “o homem se depara com a realidade de que não há nada a esperar, ele se encontra diante do irracional. Ele sente nele seu desejo de felicidade e de razão. O absurdo nasce dessa confrontação entre o chamado humano e o silêncio irracional do mundo. É isto que não se pode esquecer”.
Parece haver então, segundo Camus, uma saída para o homem absurdo. Com certeza não é a alienação de que tudo está em seus devidos lugares, do esquecimento de que não há esperança diante da morte. Não tem um Deus que nos salva no final do túnel de nossas vidas. Não esquecemos que após Nietsche não há mais Deus. E Chestov acrescenta: “Nos colocamos em face de Deus apenas para obter o impossível. Quanto ao possível, os homens são suficientes”.
Camus nos diz, que o irracional, a nostalgia humana e o absurdo são os três personagens do drama humano que devem necessariamente acabar com toda a lógica cuja uma existência é capaz de ter. O homem reconhece a luta, não despreza a razão, mas admite o irracional. Ele olha para as experiências da vida, e está pouco disposto a saltar nelas antes de saber. Ele sabe somente que nesta consciência atenta não existe mais lugar para a esperança.
Por isso Camus vai atrás do homem absurdo, aquele que pode procurar apesar da irracionalidade incondicional da existência do humano e do mundo, uma centelha de razão e de verdade. É uma busca eterna do humano, mas uma possibilidade para viver o absurdo da vida. O homem como ser pensante e consciente deve conviver com o absurdo. “Pensar não é unificar, tornar familiar a aparência sob o rosto de um grande princípio. Pensar é reaprender a ver, a ser atento, é dirigir sua consciência, é fazer de cada ideia e de cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado”.
É nisto que consiste nossa única tarefa nesta condição de absurdidade da vida. Reaprender a ver o movimento do mundo, do humano, da natureza, da sociedade. Estar atento para o que rege o mundo, que não é aquilo que consiste apenas na nossa pobre vida particular. Nas nossas pequenas esperanças de que algo maravilhoso está em nós e em nossa volta. É uma luta constante e consciente de que levar a pedra até o topo, mesmo sabendo que ela cairá, faz parte da própria vida. Saber que o que importa é o processo e não o fim.
Por último e não menos importante resta a lição sobre o amor do qual fala Camus. Temos a falsa ideia de que apenas amar as coisas nos salva. Se fosse suficiente amar, tudo seria muito simples. Quanto mais amamos, mais o absurdo se consolida. Não que ele não possa ser possível. “Mas, sobre o amor, eu conheço aquilo que é uma mistura de desejo, de carinho e de inteligência que me liga a um outro ser”.
O amor não nos salva do absurdo como nos ensina Cristo. Ele é igualmente o próprio absurdo.
Enfim, Camus nos ensina que o mundo muitas vezes nos escapa apesar do amor. E nos escapa porque se torna ele mesmo, sem as máscaras que havíamos colocado para suportá-lo. É o momento da angústia humana. É a certeza de que entre nós e o mundo existe uma cisão irreparável. Ao mesmo tempo em que estamos dentro dele, ele se distancia de nós.
“Da mesma maneira que existem dias em que diante do rosto familiar de uma mulher, nos deparamos com uma estranha aquela que havíamos amado meses e anos, e talvez iremos desejar aquilo que nos torna mais solitários. Esta estranheza do mundo é o próprio absurdo.”
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Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.
Bela reflexão, sem complicar o texto para os leigos na filosofia como é meu caso. Parabéns a Evania e ao Desacato.