Por Márcia Carmo, BBC Brasil.
A diretora de mestrado da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, Nelly Minyersky, de 91 anos, defende há pelo menos quinze anos a descriminalização e a legalização do aborto na Argentina.
Há quase 20 dias, ela passou quatro horas na tribuna da Câmara dos Deputados acompanhando o debate que terminou, no dia 11, com a aprovação do projeto de lei do aborto gratuito e voluntário no país. O texto será debatido hoje (29/12) no plenário do Senado e a expectativa é que seja votado na madrugada de quarta-feira.
Por normas de segurança da Câmara, Minyersky, convidada pelos parlamentares que apoiam a medida, fez um teste de PCR que deu negativo para o novo coronavírus, o que lhe permitiu acompanhar o que chamou de “sessão histórica” na casa.
“O aborto saiu do armário. Ele sempre existiu, mas o debate permitiu que esta realidade clandestina e que castiga as mulheres viesse à tona”, disse a ativista em entrevista à BBC News Brasil. Ela espera que o projeto seja aprovado e que “influencie” toda a América Latina, onde muitas mulheres, afirmou, sofrem caladas e acabam “até algemadas”.
Na América Latina, a Argentina passaria a ser o quinto país a permitir o aborto por decisão da mulher, ao lado de Uruguai, Cuba, Porto Rico e Guiana. No Brasil, o aborto é crime e só é permitido em casos de gravidez por estupro, de feto anencefálico e de a mulher correr risco de morte.
Ela se convenceu da necessidade de descriminalizar e legalizar o aborto nos vários anos em que trabalhou como advogada dos direitos da família.
“Foi com meu trabalho que fui vendo a importância da liberdade para as mulheres, a liberdade para escolher o próprio caminho. E o direito ao aborto é parte disso”, disse.
Desde 2012 ela trabalhou na comissão que redigiu os projetos no Congresso. “É uma batalha longa. Em 2019, apresentamos o projeto número oito. Mas agora minha expectativa é que, finalmente, será lei”, disse.
Dias antes de assistir ao debate na Câmara, a feminista tinha sido a primeira oradora nas comissões da Casa que discutiram o projeto do governo do presidente Alberto Fernández que prevê a legalização do aborto até a décima quarta semana de gestação. O texto, chamado ‘lei de Interrupção Voluntária da Gravidez’ (IVE, na sigla em espanhol), prevê ainda que menores de 16 anos devem estar acompanhadas por um dos responsáveis ou referente afetivo. O projeto estabelece que o aborto deve ser gratuito tanto em hospitais públicos como privados.
Lenço verde
Mãe de dois filhos, avó de três netos e com dois bisnetos, Minyersky costuma usar um lenço verde, que simboliza a campanha pela legalização do aborto, no pescoço, no pulso ou na bolsa. A imagem no seu perfil no WhatsApp é a do símbolo da campanha que diz: ‘Yo voto por el derecho a decidir. #Que sea ley’ (‘Eu voto pelo direito a decidir. #Que seja lei’).
Quando já tinha quase 90 anos, antes da pandemia, ela participou de passeatas e atos pela medida em 2018, quando foi aprovada na Câmara e rejeitada no Senado. “Em 2018, foi um movimento maravilhoso, com a mobilização de mais de um milhão de pessoas e, apesar de não termos conseguido a sanção da lei no Senado, conseguimos um despertar para a importância da legalização do aborto”, disse.
Para ela, principalmente desde então, o aborto passou a ser entendido como questão de direito humano. “Os jovens entenderam que o aborto é um direito à liberdade e à autonomia. E além de participarem dos nossos atos, nos convidaram para falar nas escolas sobre a necessidade da medida. Foi, de fato, como um canto à liberdade e à autonomia”, disse.
‘Saúde pública’
Na sua opinião, o aborto é uma questão de “saúde pública” porque muitas mulheres, disse, recorrem às clínicas clandestinas e acabam morrendo ou chegam aos hospitais públicos com as sequelas do que sofreram nestes lugares ilegais. “Hoje o aborto seguro existe para as mulheres que podem pagar por ele, mas não para as mulheres pobres. São elas, as pobres, que sofrem as consequências injustas da legislação discriminatória que está em vigor”, disse.
O código penal argentino, escrito há quase cem anos, em 1921, estabelece que o aborto não é delito para os casos de estupro ou quando há risco para a vida da mulher. “Mas mesmo com este código penal e com mudanças na Constituição de 1994, mulheres que foram estupradas tiveram a sua declaração questionada. Resultado do patriarcado”, disse.
Ela lembrou que em 2011 o Estado argentino foi condenado pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas por não permitir o aborto de uma jovem de 19 anos, com limitações físicas e mentais, apesar de a interrupção da gestação, em casos como este, ser prevista no código penal.
“A legalização do aborto é uma pendência que temos com as mulheres e com a democracia. O que acontece hoje chega ser absurdo”, disse. Para ela, a discussão não é fácil porque os que são contra a medida usam “argumentos falsos” e “longe da realidade”.
“Num país que tem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que mostrou entender a importância da liberdade, dos direitos individuais, como pode ser que o aborto não seja legal? Também é difícil entender por que não existem campanhas contra as armas, por exemplo, mas sim contra a legalização de uma medida que pretende proteger as mulheres”, disse.
‘Até bisavós’
Ex-presidente da Associação de Advogados de Buenos Aires, ela defende a educação sexual para “todes” (‘todes’ no lugar de ‘todos’ como reivindicam movimentos feministas e outros de cunho social). Ela acha que a prevenção é importante, mas diz que, ao mesmo tempo, é impossível ignorar a realidade atual.
“A maioria das que trabalham nessa campanha pela legalização do aborto, são mães, avós e até bisavós, como é o meu caso. Mas defendemos que o nascimento ocorra quando é desejado. O Estado não tem direito de fazer ninguém sofrer”, afirmou.
Ela vê uma falha no texto que deve ser aprovado: ele prevê penas de prisão entre três meses e até um ano quem realizar um aborto depois da semana 14 de gestação.
Atualmente a pena é de um a até quatro anos. “Como a pena foi reduzida, no projeto, é provável que nenhuma mulher vá para a cadeia, mas este artigo deveria ter sido eliminado”, disse, fazendo referência ao que foi defendido pela ‘Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito’.