O 12 de outubro do Brasil subdesenvolvido da pandemia

Foto em: Observatório do Terceiro Setor

Por Lívia Albuquerque, para Desacato.info

No marco de 1 ano e meio de duração da pandemia, não restam mais dúvidas quanto à invisibilidade e ao rebaixamento do tema da infância em meio às discussões públicas. Somente em grupos muito restritos é que a situação é colocada com mais profundidade objetiva. Para a proteção da saúde das crianças de modo geral, em meio à pandemia, restou a “escolha” dos pais: seja ela referente a ficar dentro de casa dada a sua vulnerabilidade natural por não serem capazes de cumprir minimamente medidas de proteção individual – como é, especialmente, o caso de bebês e de crianças com necessidades especiais -, ou mesmo a retornar às creches e escolas. Obviamente, que, aliando a vulnerabilidade social, onde existe ainda menos possibilidade de escolha, o quadro é agravado no que diz respeito à segurança das crianças. E a responsabilidade por elas é totalmente retirada da sociedade e do coletivo, sendo reforçada como pertencente ao campo individual.

Não houve até aqui, durante a pandemia, qualquer política pública de proteção às crianças ou aos seus cuidadores – o que implicaria em ampará-las também. Nem mesmo há a inclusão do tema da vacina, única medida de proteção adotada de fato pelo País, como prioridade no momento em que toda a população jovem e adulta está se vacinando. Sabe-se que a aprovação da vacinação infantil precisa passar por mais estudos que as demais e, portanto, demora mais para ser implementada.  No entanto, já há países vacinando crianças de diferentes faixas etárias – tais como China, Chile e Cuba -, enquanto que o Brasil já programa o retorno presencial das crianças nas escolas sem fornecer um plano de vacinação para os menores de 12 anos e muito menos aderindo a outras medidas protetivas às crianças. Aliás, já se fala no Réveillon, no Carnaval, no fim de uso de máscaras e não na proteção dos não vacinados, que representam parcela significativa da população.

O final do ano passado e o início deste foram marcados por um movimento pequeno burguês com vistas à reabertura das escolas a qualquer custo, tendo como base o direito à educação e à saúde mental das crianças. Essa mediação pelo Direito – que já não funciona há tempos para os trabalhadores – não passou de mero artifício para que essa camada da população tivesse seus interesses pessoais atendidos. Uma vez que o posicionamento governamental fosse – sem novidades – o de repassar a responsabilidade pela reabertura escolar às esferas estatais inferiores, até chegar à responsabilidade individual das famílias, toda a (superficial) construção argumentativa em torno da educação e da saúde mental das crianças chegou rapidamente ao fim. A grande mídia somente se interessou em fortalecer o argumento de que crianças não adoecem de Covid ou os sintomas da doença são leves nelas. É fato que as crianças não constituem o grupo mais atingido, porém é preciso se lembrar que os números no Brasil são alarmantes, especialmente para os bebês, quando comparados ao restante do mundo. E se não há qualquer rastreio quanto aos casos em geral da doença, na faixa etária infantil esse limbo é muito maior, já que muitas vezes as crianças nem chegam a ser testadas para a doença, por diversos motivos. No final das contas, estudantes de escolas particulares retornaram em grande maioria aos estabelecimentos educacionais com, supostamente, todos os protocolos de segurança. Enquanto estudantes das escolas públicas ficaram negligenciados, pela falta de planejamento do ensino remoto, pala falta de acesso à internet, pela falta da merenda e com todos os problemas decorrentes da pandemia somados a todos os problemas pré-existentes a ela.

A embrionária discussão sobre direito à educação e à saúde mental das crianças não evoluiu, porque não era legítima da classe trabalhadora. Talvez Paulo Freire considerasse um exemplo da consciência hospedeira da consciência opressora. Os únicos direitos que são mantidos são o direito dos empregadores explorarem os trabalhadores em rotinas e condições de trabalho extenuantes e, por consequência, o de o capital preparar as crianças em espaços escolares inadequados – em aspectos de segurança, pedagógicos, estruturais, nutricionais, higiênicos – para se tornarem os adultos explorados e oprimidos de amanhã. O Brasil que hoje celebra a data comercial do dia das crianças, tem o sucateamento cada vez maior da educação, sobretudo a infantil, o que não se dá somente por meio de cortes orçamentários.

Por certo, a falta de compromisso político com a classe trabalhadora é parte significativa de todo esse problema. Até mesmo nos círculos mais revolucionários, é evidente o desprestígio relegado ao tema das crianças e das futuras gerações. Quando se fala sobre educação, por exemplo, logo se pensa na educação superior – debatida com mais profundidade e interesse – e a educação básica não ganha espaço. Quanto mais próximo dos anos iniciais de vida do ser humano, menos discussão política ao redor. Nem mesmo atrelada à luta feminina, já que mães e profissionais mulheres são as maiores cuidadoras de crianças no País, há sólidas construções. Permanecem pouco difundidas autoras como Krupskaia, que entendia que as creches e escolas devem oferecer dez vezes melhores condições que uma mãe zelosa pode oferecer individualmente.

Na Cuba pós-revolução, a preocupação com a infância não foi apenas a de construir espaços físicos para que as crianças permanecessem enquanto suas mães estivessem em seus trabalhos. As creches e escolas foram totalmente reformuladas, pensando-se no cuidado integral: de higiene, saúde, nutrição, educação e bem estar. Além do mais, era fundamental que esses espaços se localizassem próximos aos locais de trabalho dos responsáveis pelas crianças. E, é claro, as próprias condições de trabalho precisaram ser redefinidas, pois ninguém pretende ter filhos para não usufruir de sua companhia e crescimento e entregá-los à desumanização do capital.

É evidente o prejuízo que a pandemia trouxe para as crianças: no aprendizado, no bem estar, na segurança, na saúde mental, na perda de seus responsáveis para a doença ou na perda da própria vida, ainda que sejam parte de um grupo considerado de menos risco. É imperdoável que escolas tenham ficado fechadas por quase 2 anos sem ter havido uma tentativa eficaz de dar suporte às crianças e suas famílias, e, mais ainda, que irão retornar às suas atividades exatamente do mesmo jeito que (não) funcionavam antes. Por outro lado, já é possível entender a infância brasileira subdesenvolvida, onde a criança não atinge marcos importantes de desenvolvimento em razão das condições objetivas de nossa sociedade periférica no sistema capitalista mundial. Esse processo não surgiu com a pandemia. Há que se pensar nas crianças tal como os indivíduos que já são e nos prejuízos que já tem, bem como na geração que um dia irão ser para contribuir com a nossa sociedade. É urgente entender os caminhos da sociedade sem ingenuidade, não perdendo de vista o objetivo do desenvolvimento pleno dos indivíduos, que jamais será um objetivo do capital, porque é uma necessidade da existência do ser humano livre.

 

Lívia Albuquerque

Lívia é mãe de 3 filhos, bacharel em Direito, funcionária pública, vice-presidente do SINCAF.

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