Entrevista de Gilson Camargo com Maurício Krepsky Fagundes.
Em 2018, a fiscalização do governo federal encontrou 1.723 pessoas trabalhando em condições análogas às de escravo, das quais 1.113 foram resgatadas. Ao todo, os infratores pagaram R$ 3,4 milhões em verbas salariais e rescisórias. O resultado das ações de fiscalização mostra que o número de trabalhadores submetidos ao trabalho escravo no país quase triplicou na comparação com 2017, quando foram resgatados 645. A exploração de mão de obra escrava vinha decrescendo desde 2007, de 6 mil trabalhadores resgatados naquele ano para cerca de 5 mil em 2008; 3,7 mil em 2009, oscilou acima de 2,5 mil de 2010 a 2013, depois caiu para 1,7 mil em 2014; 1,2 mil em 2015, e menos de mil casos até o ano passado. De acordo com o auditor fiscal Maurício Krepsky Fagundes, chefe da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), vinculado ao extinto Ministério do Trabalho e, a partir de janeiro deste ano, ao Ministério da Economia, de março a agosto de 2017 a fiscalização foi praticamente paralisada devido à redução de pessoal e cortes de até 70% do orçamento. Em setembro, o orçamento disponível foi readequado. Nos últimos anos, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) passou a atuar com mais rigor, o que explica, segundo ele, o alto índice de autuações em 2018. “As ações de combate ao trabalho escravo coordenadas pela auditoria fiscal do trabalho foram executadas conforme planejamento prévio, sem restrições orçamentárias. Além disso, realizamos ações de inteligência fiscal com o intuito de planejar operações em locais de difícil acesso, onde foram encontrados mais trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho e vida”, afirma Fagundes nesta entrevista.
Extra Classe – Por que o número de pessoas resgatadas da condição de trabalho análogo à escravidão quase triplicou em 2018?
Maurício Fagundes – As ações de combate ao trabalho escravo coordenadas pela auditoria fiscal do trabalho em 2018 foram executadas conforme planejamento prévio, sem restrições orçamentárias como ocorreu em 2017, período no qual houve contingenciamento de recursos que atingiu a Secretaria de Inspeção do Trabalho com um corte de 70% do orçamento previsto em março e se estendeu até agosto. Além disso, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), criado em 1995 e coordenado pela auditoria fiscal do trabalho, realizou em 2018 ações de inteligência fiscal, com o intuito de planejar operações em locais de difícil acesso e com maior número de trabalhadores possivelmente vítimas de trabalho escravo. Desse modo, foram encontrados mais trabalhadores em condição análogas às de escravo que nas operações com menor complexidade de deslocamento.
EC – Onde predomina a exploração de mão de obra escrava?
Fagundes – O maior número de trabalhadores encontrados em condição análogas às de escravo em 2018 foi no meio rural (1,2 mil casos), embora o meio urbano já tenha registrado número bastante expressivos: 523.
EC – Em que setores essa exploração é mais acentuada?
Fagundes – Todos os casos de trabalho escravo são graves, entretanto, alguns chamaram a atenção por possuir um caráter de exploração diferenciado dos demais. Podemos destacar os casos de exploração mão de obra de imigrantes venezuelanos em Roraima; o de exploração de 565 trabalhadores por uma seita evangélica em MG, BA e SP, no qual havia um domínio sobre a liberdade dos fiéis baseada em discurso religioso; exploração de ouro em garimpo do Pará envolvia os trabalhadores em uma série e ameaças e restrições de direitos; um resgate de 90 trabalhadores em duas casas de farinha em Alagoas encontrou um número anormal de crianças e adolescentes trabalhando em condições degradantes, ao todo 12 menores, de 11 a 17 anos de idade; resgate de 25 trabalhadores rurais em atividade de extração de pó de carnaúba no RN, desde 2008 não havia registro de trabalho escravo no estado. Os setores com maior incidência foram criação de bovinos, com 13 fiscalizações, cultivo de café (10), produção florestal nativa (5) e reflorestamento (3).
EC – Dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho mostram que a última década houve uma redução no número de trabalhadores resgatados, de 6 mil em 2007 para menos de mil casos em 2017. Por que voltou a crescer?
Fagundes – O ano de 2007 não é um parâmetro, pois em apenas três estabelecimentos de cultivo de cana de açúcar foram encontrados mais de 3 mil trabalhadores. Especificamente esse setor não registra novos casos desde 2013. Com as demais atividades ocorreu processo semelhante, as ações efetivas de repressão e prevenção desses casos tiveram grande alcance na sociedade. O Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, publicado pela Detrae, é uma ferramenta de transparência e reconhecido pela ONU como boa prática no combate ao trabalho escravo, assim como a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que além da coordenação da auditoria fiscal do trabalho, possui a participação do Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União e o apoio fundamental da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, além de outras instituições que possam colaborar em determinadas operações, como o ICMBio, IBAMA, DNPM e outras forças policiais ambientais. A queda do número de resgatados é reflexo natural da eficiência na execução da política pública, da mecanização no campo, do surgimento de casos no meio urbano (onde a força de trabalho tende a ser menor quantitativamente) e da mudança do perfil de exploração a níveis degradantes, que hoje tendem a ser contratos de curta duração, nos quais muitas vezes não há tempo hábil nem para denúncia e muito menos fiscalização.
EC – Qual a relação dessa explosão do trabalho escravo no país com a reforma trabalhista e qual o perfil dos resgatados?
Fagundes – A condição análoga à de escravo possui forte relação com a informalidade e com o desemprego. Dentre aqueles resgatados que já tinham um histórico de pelo menos uma admissão em emprego formal, 64% das últimas movimentações do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) referentes aos trabalhadores resgatados de 2018 foram demissões por iniciativa do empregador. Isso reflete uma considerável entrada de mão de obra em um sistema de exploração abaixo de patamares mínimos de dignidade, originária do desemprego involuntário. Dentre os trabalhadores estrangeiros resgatados, apenas 2% já tinham sido admitidos em um emprego formal. De acordo com o perfil, dados da fiscalização demonstram que 45% dos trabalhadores maiores de 18 anos resgatados nunca possuíram um emprego formal antes da data do resgate, 57% tiveram nenhuma ou apenas uma admissão no mercado de trabalho formal e 72% obtiveram, no máximo, três admissões registradas no histórico laboral. Ainda foram verificados casos de trabalho escravo em razão da reforma trabalhista, foram constatados alguns casos de fraude na terceirização de mão de obra para colheita do café no sudeste, mas eram casos que se tentou esconder os conhecidos casos de aliciamento em estados do nordeste com o objetivo de afastar responsabilidade do real tomador dos serviços.
EC – Como atuam os aliciadores?
Fagundes – Por exemplo, em agosto de 2018, o grupo de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho, em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação para a Biodiversidade (ICMbio), desarticulou um garimpo em uma propriedade instalada de forma ilegal dentro da Floresta Nacional do Amana, no município de Itaúba, oeste do Pará. A empregadora retinha o pagamento dos trabalhadores, que recebiam de 3% a 7% do ouro que extraíam, e usava esse crédito para descontar os gastos desses trabalhadores no garimpo. A dívida somente era revelada quando o trabalhador ia embora. Os 30 garimpeiros e oito cozinheiras resgatados viviam em situação análoga à de escravos. No garimpo, uma garrafa de cachaça era vendida por um grama, cerca de R$ 100. Um pacote com 12 latas de cerveja, dois gramas, 200 reais. Os preços na cantina e na farmácia eram de cinco a dez vezes maiores que os da cidade e havia muitos itens com validade vencida. Os trabalhadores sequer sabiam o preço dos gêneros e pagavam até pelos equipamentos de trabalho também eram vendidos por preços altos. Um par de botas custava 2,5 gramas de ouro, ou R$ 250,00, razão pela qual a maioria trabalhava descalça na lama, em contato com o mercúrio utilizado para separar o ouro. Apuramos um total de R$ 366.812,00 de verbas salariais e rescisórias devidas aos trabalhadores resgatados, a serem pagos pela proprietária do garimpo.
EC – Quais são os critérios para a inclusão e exclusão de pessoas físicas e jurídicas da lista suja do trabalho escravo publicada pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho?
Fagundes – Os empregadores que exploram mão de obra em condição análoga à de escravo estão sujeitos às penalidades impostas pela auditoria-fiscal do trabalho (multas administrativas) além de arcar com as despesas de rescisão contratual de todos os que estiverem em condição análoga à de escravo. No âmbito judicial poderá ser instaurada ação civil pública para reparação de danos, promovida pelo Ministério Público do Trabalho e também poderá o infrator responder a ação penal pelo crime de trabalho escravo instaurada pelo Ministério Público Federal. O Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo é regulamentado pela Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 11/05/2016. Essa portaria impede que qualquer nome de empregador pessoa física ou jurídica seja publicado sem haver um processo administrativo em que seja oferecido o direito de contraditório e ampla defesa de um auto de infração específico em que seja detalhado o motivo pelo qual foi caracterizado trabalho escravo em seu ambiente de trabalho ou cadeia produtiva. Além disso, outros critérios temporais são estipulados por decisão judicial transitada em julgado que obriga o Ministério do Trabalho a atualizar e publicar o cadastro semestralmente. O GEFM atua em todo o território nacional, por ser um Grupo Especial, atua preferencialmente em locais onde as unidades regionais da inspeção do trabalho, inseridas no âmbito das Superintendências Regionais do Trabalho não conseguem atuar, seja por dificuldade logística, seja pelos casos que oferecem risco à segurança dos auditores que residem na região.
EC – Há reincidências?
Fagundes – Quando há aliciamento, os trabalhadores alvo da exploração são aqueles que estão em um cenário de vulnerabilidade social, tanto nacionais quanto imigrantes. Dessa forma, submetem-se a condições abaixo de um patamar digno de trabalho imposto pelos empregadores. Há casos de reincidência de empregadores, inclusive há empregador inscrito duas vezes no Cadastro de Empregadores em duas ações realizadas em 2015 e 2016.
EC – O agronegócio teve o maior número de ações de fiscalização. Isso explica o elevado índice de acidentes do trabalho com mortes no campo?
Fagundes – Os acidentes de trabalho no meio rural ou urbano possuem primeiramente uma relação direta com uma falta de gestão de saúde e segurança no trabalho. Embora as condições degradantes de trabalho impliquem em sérios riscos de acidentes e os auditores encontram muitos trabalhadores acidentados nas operações de resgate, a caracterização do trabalho análogo ao de escravo envolve aspetos mais amplos de direitos sociais e liberdades individuais.
EC – Como a extinção do Ministério do Trabalho impacta a fiscalização do trabalho escravo no país?
Fagundes – As ações de combate ao trabalho escravo para 2019 já estão executadas. Houve resgate de 12 trabalhadores em janeiro, em duas operações, uma em Minas Gerais e outra no Pará.