Novos caminhos para a velha questão penitenciária brasileira

Por Renato de Vitto*.

“Severamente superlotadas e empesteadas pela violência”. É assim que a Human Rights Watch (HRW), em seu último relatório mundial, caracteriza as unidades prisionais brasileiras. Trata-se, mais uma vez, de um destaque negativo para o sistema penitenciário do País entre as organizações internacionais de defesa de direitos humanos.

Como referência, a HRW cita os últimos dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciária (Infopen): o Brasil conta com uma população carcerária de 607.731 pessoas, ultrapassando em mais de 60% o número de vagas disponíveis em penitenciárias e carceragens de delegacia.

A crítica é bem conhecida e tão antiga quanto as próprias prisões. Ambientes que mais degeneram do que reintegram o indivíduo à sociedade, expondo-o a um cotidiano de violência e estigmatização, tem sido, há muito, a marca do sistema prisional brasileiro.

Apesar disso, ainda é comum o discurso de que a cadeia é a única solução para os problemas de segurança. A difusão da cultura do medo e do ódio, que encontra grande espaço em veículos de comunicação e redes sociais, não contribui na busca por soluções inteligentes e efetivas, visto que a complexidade do problema não cabe no discurso fácil dos programas sensacionalistas.

Entre 1990 e 2014, o número de detentos no país passou de 90 mil para mais de 600 mil. Se cadeia fosse sinônimo de segurança, com um crescimento do encarceramento de 575%, era de se esperar que a sociedade se sentisse mais segura hoje do que há 25 anos, correto? Parece que a realidade nos indica que não.

O desafio de se construir um padrão de coesão social que reduza os espaços por onde a violência se espraia pressupõe a redução das desigualdades sociais. Mas o cárcere, que recebe anualmente centenas de milhares de novos presos, constitui uma reminiscência viva das senzalas: 54% dos detentos brasileiros são jovens, 67% são negros e apenas 8% concluiu o Ensino Médio. Boa parte das pessoas privadas de liberdade têm ou teve familiares próximos presos. Ou seja, as penitenciárias continuam sendo o retrato de um país marcado pela desigualdade.

Ainda que desconsiderássemos o ideal civilizatório, do ponto de vista puramente pragmático, deveríamos estar convencidos da necessidade de investir na ruptura desse ciclo de exclusão, violência e encarceramento.

Prover condições mínimas de saúde e otimizar o cumprimento de pena para ofertar, em escala, programas de educação, capacitação profissional e trabalho deveria ser a prestação mínima do Estado para que o detento não reincida.

Porém, o crescimento exponencial da taxa de encarceramento, que no Brasil já representa o dobro da mundial, reduz ainda mais a capacidade de investimento do Estado em políticas de reinserção social. Quanto mais se prende, mais se degeneram as prisões. Quanto mais se prende, mais se degeneram os indivíduos.

Vale lembrar que a experiência do encarceramento impacta não só o detento, mas todo seu círculo familiar. Além do estigma e do preconceito, o núcleo familiar do preso, chave para sua reinserção, sofre os efeitos da prisionalização ao ser submetido a tratamentos vexatórios em suas visitas, em razão da imposição de revistas com desnudamento e agachamento.

Essa é uma prática condenada por diversos organismos internacionais e que o governo federal, por meio do Ministério da Justiça está empenhado em extinguir a partir da doação de equipamentos de inspeção eletrônica, sem que isso implique prejuízo à segurança dos estabelecimentos.

Desde 2015, foram doados R$ 17 milhões em equipamentos aos estados e espera-se que todos os equipamentos que serão adquiridos para as Olimpíadas do Rio (cerca de R$ 41 milhões) sejam revertidos às unidades prisionais, de modo a criar condições adequadas para se pôr fim a esse procedimento abominável e arcaico.

Novos modelos

O modelo punitivo construído em torno do binômio prisão-liberdade já vem sendo rediscutido em vários países. Mesmo nos Estados Unidos, país que conta com a maior população carcerária do mundo, de 2,2 milhões de pessoas, os debates sobre reformas penitenciárias, que têm pautado de republicanos a democratas, partem da premissa de que os índices de encarceramento devem ser reduzidos.

Nunca um presidente americano se manifestou tanto sobre o tema quanto Barack Obama, que tem defendido uma reforma do sistema penal e carcerário que parta da revisão de penas e busca por alternativas à prisão.

Por aqui, é importante destacar o esforço que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em torno das audiências de custódia, projeto inovador que busca acelerar e qualificar o processo decisório do juiz sobre a prisão provisória. Hoje, 41% dos detentos brasileiros sequer foram condenados em primeiro grau de jurisdição.

Atento a essa realidade, o governo federal tem buscado dar apoio ao Judiciário na aplicação das chamadas alternativas penais, financiando a instalação de Centrais de Monitoração Eletrônica, estruturas voltadas para o acompanhamento de pessoas submetidas a monitoramento por meio de tornozeleiras, e de Centrais Integradas de Alternativas Penais, voltadas a dar apoio aos indivíduos submetidos a penas e medidas alternativas, como prestação de serviços à comunidade e acompanhamento periódico pelo juiz.

Ainda no ano passado, a União assinou convênios com 12 estados para a implantação de Centrais de Monitoração Eletrônica, no total de 23,9 milhões de reiais em repasses de recursos do Fundo Penitenciário (Funpen) para o programa. Para as Centrais Integradas de Alternativas Penais, foram firmados convênios com nove estados, com aporte total de 27,2 milhões de reais.

Tais recursos representam um investimento sem precedente no sistema de alternativas penais, cujo custo mensal gira em torno de 80 a 300 reais por pessoa monitorada (neste caso, com uso de tornozeleiras), ao passo que o custo mensal do encarceramento não representa menos que 1,6 mil reais por detento, podendo superar os 5 mil.

Para além do custo, o encarceramento acarreta por sua essência um processo de desintegração social do preso, no qual a probabilidade de reincidência é consideravelmente superior à verificada no caso dos cumpridores de penas e medidas alternativas.

Desde o Império, as prisões brasileiras apenas têm devolvido à sociedade a mesma violência que justifica a sua existência. A constatação da ineficácia desse remédio caro e amargo para a sociedade brasileira deve conduzir a uma reflexão séria e profunda que, esperamos, consolide as bases para a construção de uma política penal mais sofisticada e inteligente e que aponte novos caminhos para a velha questão penitenciária.

*Renato De Vitto é defensor público do Estado de São Paulo e ocupa atualmente a Direção Geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

Fonte: Carta Capital

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