Por Caio de Freitas Paes, Agência Pública.
Ao longo do governo de Jair Bolsonaro (PL), a caserna ampliou sua atuação na Amazônia. Para além da segurança, avançou sobre o desenvolvimento econômico e a política, tomando também as rédeas da proteção ambiental da Amazônia. Mas o desmatamento tem batido recordes e os conflitos escalaram, com repetidas chacinas de indígenas, ribeirinhos e outros povos. Associadas ao garimpo, facções criminosas se infiltram na maior floresta tropical do mundo e, assim, ameaçam a soberania nacional. Além disso, as Forças Armadas parecem ignorar problemas ligados a mineradoras estrangeiras na região – vide o lobby de um militar da reserva para o grupo canadense Forbes & Manhattan, dono da mineradora de ouro Belo Sun no Pará, revelado pela Agência Pública.
“Militares identificam a atuação das ONGs na Amazônia como uma grande ‘ameaça’ [à soberania], pois temem que indígenas possam ser conquistados por atores estrangeiros e, depois, exigirão independência do Brasil. Mas isso de fato é real? Salvo a Guerra do Paraguai, as Forças Armadas se moldaram a partir de conflitos contra ‘ameaças’ internas”, diz à Pública a doutora em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) Ana Penido.
Pesquisadora da UNESP e do Instituto Tricontinental, ela é uma das autoras de “A defesa da Amazônia e sua militarização”, recém-lançado pela Universidade Federal do Pará (UFPA). O estudo questiona conceitos centrais na perspectiva militar – como defesa das fronteiras, geopolítica e soberania – e analisa os modelos de integração da Amazônia propostos pela caserna.
O material ainda problematiza a noção de que apenas as Forças Armadas seriam comprometidas com a defesa da Amazônia ante ‘ameaças’, segundo a ótica dos próprios militares. Um exemplo é a China, como sugere o “projeto de nação” elaborado pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas-Boas e organizações de outros militares, lançado no último dia 19 de maio em Brasília (DF).
“É curioso o incômodo com a presença da China e da Rússia no continente, porque não há problema [das Forças Armadas] com presença e bases [militares] dos Estados Unidos na Colômbia, da França na Guiana, e do Reino Unido nas Malvinas, ou seja, com a presença militar de potências de outros continentes aqui na América Latina”, diz Penido.
A questão política também se destaca no estudo. Não à toa: sob a batuta do general da reserva Walter Braga Netto, o ministério da Defesa semeou centenas de milhões do ‘orçamento secreto’ pela Amazônia.
Levantamento do jornal O Globo mostra que onze senadores aliados do governo destinaram mais de R$ 400 milhões em emendas de relator para seus apadrinhados políticos na região via Calha Norte, programa diretamente ligado às Forças Armadas. Um ano antes do escândalo, o governo pavimentou o caminho das futuras emendas, ampliando em 150% o teto de repasses ao Calha Norte.
“A história em torno das Forças Armadas mostra como há um certo pensamento de elite nelas: para realizar seus objetivos, uma nata militar se forma, ‘recruta’ e depois ‘prepara’ elites, civil e política, para a consolidação de uma nação”, afirma Penido.
A Agência Pública conversou com a pesquisadora, para aprofundar o estudo recém-lançado. Leia a seguir os principais trechos da conversa.
Como os militares definem a soberania da Amazônia, considerando o envolvimento de seus membros com empresas privadas e políticos na região? Há contradições entre esta ideia de soberania e o que desejam os povos originários e tradicionais?
O “projeto de nação” lançado há pouco pelos institutos de militares da reserva, inclusive o do general [Eduardo] Villas-Boas, fornece indícios importantes para entendermos o quê é a soberania na visão dos militares. Basicamente o material defende que um país soberano é aquele que não tem nenhum outro Estado dentro do seu próprio território. Ou seja, uma visão de soberania – e de ameaças a ela – que passa por uma noção jurídica, territorial, excluindo outros aspectos pertinentes. Em nosso estudo, problematizamos a política por trás desta postura das Forças Armadas: qual o processo de engajamento e qual a participação da sociedade sobre a definição das ameaças para a Amazônia?
Diferente da noção de vulnerabilidade, o conceito de ameaça é relacional e relativo. Por exemplo: militares identificam a atuação das ONGs na Amazônia como uma grande ‘ameaça’ [à soberania], pois temem que indígenas possam ser conquistados por atores estrangeiros e, depois, exigirão independência do Brasil. Mas isso de fato é real? Salvo a Guerra do Paraguai, as Forças Armadas se moldaram a partir de conflitos contra ‘ameaças’ internas. Curiosamente, desde o início do governo Bolsonaro temas que realmente atentam contra a soberania têm avançado, mas não parecem preocupar os militares – como o projeto de lei que amplia o limite nas vendas de terras para estrangeiros, aprovado no Senado.
No estudo, vocês enxergam no colonialismo um dos elementos-base do pensamento militar sobre a Amazônia e seus povos. Por que?
A própria história do Brasil mostra os rastros do colonialismo no pensamento militar. Exércitos de outros países do nosso continente nasceram a partir de lutas de libertação nacional, com algum grau de engajamento popular. Mas, no Brasil, as Forças Armadas se formaram e consolidaram-se em acordo com as elites de diferentes épocas, ou seja, não houve um marco, uma luta contra as metrópoles europeias para romper o pacto colonial. Como não houve ruptura com as elites, em especial a portuguesa, o pensamento colonial seguiu influente nas Forças Armadas. Outro bom exemplo é o símbolo da onça, usado por batalhões na Amazônia, uma representação da natureza a ser domada – o mesmo princípio aplicado à população civil brasileira. Isso sem contar outros traços de colonialismo, vindas das doutrinas militares francesa e norte-americana, ambas muito relevantes na formação do pensamento militar brasileiro contemporâneo.
O que se pode dizer da noção das Forças Armadas de que elas seriam a instituição mais capaz de defender a Amazônia? Quais os reflexos práticos disto e suas eventuais contradições?
Pensemos o seguinte: nos anos 1930, era obrigatório ser alfabetizado para entrar na academia militar brasileira. Ou seja, uma ínfima parte da população tinha chance de ascender ao oficialato, o que já diz muito sobre certo elitismo das Forças Armadas. Os militares espelharam-se nas forças de outras nações, pensando constantemente que deviam melhorar enquanto olhavam a população brasileira sem achá-la digna o bastante. É uma instituição que se vê mais capaz que qualquer outra dos civis, com traços de autoritarismo – afinal, as Forças Armadas julgavam-se as mais indicadas para ditar os rumos do país. Para nós, é daí que vem o conceito de ‘tutela militar’, ou seja, ‘eu, militar, entendo mais que os civis, atuo desde antes da proclamação da República e tenho melhores condições de guiar o país’. Vale lembrar que militares usam a batalha de Guararapes como marco histórico de sua fundação, algo anterior à concepção do Estado brasileiro.
Este mesmo pensamento se aplica não somente aos civis, como também aos povos originários, em especial aos indígenas. Na prática, vê-se que as Forças Armadas os consideram menos capazes de interferirem, de alterarem a dinâmica interna do país – por isso há esta noção dos ‘irmãos índios’, que devem ser ‘integrados’ à sociedade. Esta formação histórica dos militares se plasma em uma visão em que, para eles, não há contradição em permitir que mineradoras estrangeiras venham e explorem a Amazônia, pois isso traz o desenvolvimento econômico à região enquanto eles próprios mantêm o controle sobre a floresta e seus povos. É também por este motivo que, ao longo dos anos, diferentes grupos internos no Brasil foram vistos como ameaças pelos militares: desde os comunistas, passando pelos ambientalistas e, hoje, os globalistas – como se nota pelo “projeto de nação” lançado há pouco pelos institutos de oficiais da reserva. A raiz do pensamento, no fim das contas, segue a mesma.
O que se pode dizer sobre a abordagem das Forças Armadas com países vizinhos na Amazônia?
Não há dúvidas que os militares enxergam as fronteiras a partir da ótica jurídica, das linhas imaginadas dos mapas – algo que funciona quanto ao fluxo de entrada de indivíduos, mas não de mercadorias, que circulam livremente pelo intenso contrabando na região. Certa belicosidade das Forças Armadas para com nossos vizinhos deriva do pensamento militar dos Estados Unidos, que enxerga a migração como uma ameaça em potencial. Mas é algo muito contraditório no caso brasileiro, pois o país se formou a partir dos diferentes fluxos migratórios ao longo dos séculos.
Hoje, os resquícios deste pensamento são percebidos facilmente, por exemplo, nas estruturas que recebem imigrantes no Brasil. Não há agências civis ou políticas recebendo aqueles que chegam, há somente forças de segurança – sejam militares ou a Polícia Federal. Inclusive, defendemos em nosso estudo que esta abordagem com os imigrantes deve mudar, pois eles não são ameaças em potencial. Parece que nossas Forças Armadas ainda estão presas a modelos de guerra antigos, calcados na disputa por fronteiras, o que as leva a uma relação de desconfiança com nossos vizinhos.
Houve tentativas de aproximação com outras forças militares do continente, mas isso mudou de alguns anos para cá – vide a mudança de foco das Forças Armadas no Brasil, passando do eixo sul para o norte, na Amazônia, combinando-se a uma espécie de anticomunismo depois do governo de Hugo Chávez na Venezuela. É curioso o incômodo com a presença da China e da Rússia no continente, porque não há problema [das Forças Armadas] com presença e bases [militares] dos Estados Unidos na Colômbia, da França na Guiana, e do Reino Unido nas Malvinas, ou seja, com a presença militar de potências de outros continentes aqui na América Latina.
No estudo, vocês defendem que a militarização da Amazônia persistirá nos próximos anos, tal como a presença das Forças Armadas em outros segmentos para além da segurança. O que podemos esperar?
Quando falamos isso, nos referimos a uma infiltração do pensamento militar, calcado na guerra, nos conflitos e ameaças, dentro do Estado. O militar encontra ou cria inimigos e, na política, ocorre o mesmo, mas de modo customizado – ambientalistas e globalistas são apenas os exemplos mais recentes. A lógica militar de esconder informações dos inimigos opera inversamente ao que se espera do poder público, que deve ser cada vez mais transparente, com ferramentas de controle das instituições pela população civil.
Acreditamos que esta militarização é muito mais profunda, inclusive anterior ao governo Bolsonaro, e que o que alguns chamam de ‘partido militar’ tende a perder força com uma eventual troca de governo. Mas não desaparecerá. Se não desconstruirmos, junto às Forças Armadas, a noção que os brasileiros são uma ameaça quando se organizam para exigirem seus direitos, teremos problemas novamente. É necessário desconstruirmos a ideia de vigilância dos militares sobre civis, imigrantes, indígenas e assim por diante.
Também vale refletir sobre o papel dos militares na máquina pública. Sua influência, antes restrita ao ministério da Defesa, extrapolou para outras áreas, como nos órgãos ambientais, no setor energético, de infraestrutura, no ministério de Minas e Energia. Por consequência, se alastrou a lógica da ‘porta giratória’, daqueles que ocupam cargos no poder público e, pouco depois, migram para a iniciativa privada garantindo privilégios a alguns poucos. Lembremos que não há quarentena para os militares, seja para entrarem na política, seja para trabalharem e fundarem empresas. Temos de nos debruçar sobre este tema o quanto antes.