Por Sérgio Augusto*.
Fazia um bom tempo que eu não ouvia falar de Arthur Bloch. Celebrizado em meados da década de 70, quando compilou em livro a Lei de Murphy e suas variáveis, parecia em hibernação permanente até que as possibilidades humorísticas do fim de século o estimularam a sair da toca com novas e sábias observações sobre este mundo cada vez mais talhado para os incrédulos. As leis de Murphy já existiam quando Bloch, hoje com mais de 50 anos, as coligiu. Conhecia as principais delas (“Se algo puder dar errado, certamente dará errado”; “O pão sempre cai com o lado da manteiga pra baixo”) desde o início da década de 60, quando meu amigo Carlos Leonam as atribuía, equivocadamente, a outro nome, Brooks, cuja origem nunca apurei. Tampouco sei quem é ou foi Murphy, se algum cínico cientista ou pseudônimo de Bloch, mas isso é irrelevante. O importante é que, nas últimas décadas, Murphy, e não Pirron, Carnéades, Enesidemo ou qualquer filósofo grego dessa estirpe, virou sinônimo de ceticismo, se bem que, vou dizendo logo, sem a profundidade do nosso cético número um, Millôr Fernandes, cujos apotegmas a realidade não consegue contestar. Todo dia, por exemplo, o ser humano não dá mostras de que é mesmo, como alega Millôr, inviável?
Esperto e com a vantagem de, ao contrário do Millôr, escrever numa língua imperial, Bloch fez da murphylogia uma “ciência” de fama internacional, cheia de princípios, axiomas e corolários sobre uma infinidade de coisas, alguns dos quais recolhidos em pensadores tão ilustres como Heine (“Devemos perdoar nossos inimigos, mas só depois de mortos”), Einstein (“Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana”) e Von Braun (“Pesquisa é o que fazemos quando não sabemos o que estamos fazendo”). Foi, porém, da atrevida mente de Bloch, digo, Murphy, que saíram pérolas como esta: “Só sabemos a profundidade de uma poça depois que enfiamos os pés nela.” E esta Lei de Eponímia, que o isenta de qualquer acusação de apropriação indébita: “Nenhuma lei leva o nome de quem a inventou.” Que, naturalmente, tem um corolário: “Não importa quem disse, mas quem pôs o nome.” Um exame mais atento da murphylogia nos levaria até o grego Diógenes e detectaria discípulos em inesperadas figuras como Caetano Veloso (que, salvo engano, foi quem primeiro disse que de perto todas as pessoas são anormais) e o ex-presidente americano Lyndon B. Johnson, a quem devemos este puro murphylogismo: “Quando dois homens concordam em tudo, pode contar que só um deles é capaz de pensar.” Generoso, em sua nova coleção de boutades, atualizadas à chegada do ano 2000, Bloch burla a Lei da Eponímia, identificando os verdadeiros autores de diversos conceitos por ele perfilados. Embora absorvidos pela murphylogia, o conceito de patriotismo como a predisposição de matar e morrer por razões triviais é apresentado como a Lei de Russell (de Bertrand e não de Jane), e o de progresso tecnológico como um machado nas mãos de um criminoso psicopata como a Lei de Einstein.
Com isso, o novo compêndio de Bloch faz lembrar um pouco aquelas saborosas antologias do mau humor organizadas por Ruy Castro na década de 80. Sua divisão temática, contudo, é mais genérica. Enquanto esteve hibernando, Murphy refletiu muito sobre ecologia (“Uma espécie só se encontra protegida quando ameaçada de extinção”; “Tudo que se fizer para melhorar um meio ambiente causará danos consideráveis em outro”) e os avanços da tecnologia (“O progresso é a troca de uma aporrinhação por outra”; “Se no mercado competem dois sistemas tecnológicos incompatíveis, predominará o de qualidade inferior”; “O robô produz mais que um ser humano porque não fala ao telefone”). Também a informática mereceu dele especial atenção, com enunciações cuja rentura nenhum usuário de computador há de pôr em dúvida: “A probabilidade de um computador pifar é proporcional à importância do documento no qual se está trabalhando”; “O pior vírus é aquele que se instala no único arquivo que você não vacinou”; “A todo computador recém-comprado corresponde outro, recém-lançado com mais potência e mais barato”; “O disco rígido é a parte do computador que sempre fica rígida no pior momento”.
Claro que tudo parte, ou melhor, recomeça da Primeira Lei de Murphy, que nesses últimos anos foi enriquecida com algumas achegas. Primeira achega: “Quando a gente sabe que algo pode dar errado e toma as devidas precauções, outra coisa fatalmente dará errado.” Segunda: “A Lei de Murphy sempre espera pelo pior momento.” Terceira: “Quando as coisas vão mal em algum lugar é sinal de que poderão ir mal em todos os lugares.” Até a sra. Murphy criou um corolário: “Se algo tem de enguiçar, irá enquiçar justo quando seu marido não estiver em casa.”
Se fôssemos lúcidos ou apenas honestos, não veríamos Bloch como um impertinente cínico, mas como um inatacável realista. Afinal de contas, se ele não foi o único a notar que as coisas desandam de repente e se resolvem gradualmente ao menos foi o primeiro a dizê-lo publicamente. E também o primeiro a afirmar que o ser humano é o único animal capaz de voltar atrás num erro e cometer outros que antes conseguira evitar. Também foi por intermédio dele que aprendi a ser mais fácil lutar por princípios do que conviver com eles. Que para cada ação nossa corresponde uma reação do governo igual e contrária. Que a entropia dispensa manutenção. Que os acidentes ocorrem quando duas pessoas resolvem ser espertas ao mesmo tempo. Que o telefone nunca toca quando estamos desocupados. Que todo dinheiro que cai do céu vem seguido de um fiscal da Receita que subiu do inferno. Que a distância mais curta entre dois pontos está sempre em obra. Que só ri por último quem pensa devagar. Que a loucura é hereditária e transmitida pelos filhos. Que a felicidade só bate à porta quando estamos no banheiro. Que a coerência é o último refúgio dos que não têm imaginação. E que sempre encontramos força suficiente para suportar a desgraça alheia.
De todas as leis de Murphy até agora conhecidas, apenas uma, a meu ver, merecia uma retificação. Vai longe o tempo em que as pessoas que trabalham sentadas ganhavam mais do que as pessoas que trabalham de pé. É só comparar o contracheque dos jogadores da NBA, dos bambas do boxe, das estrelas do futebol e dos ídolos da música pop com o de um escritor. Até quem trabalha agachado já está ganhando muito mais do quem trabalha sentado. A única exceção é o Paulo Coelho, que ainda fatura mais do que a Carla Perez.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revistaBravo!, em sua edição de novembro de 1999.
* Rio de Janeiro, 25/11/2002.
Fonte: Digestivo Cultural