Por Daniel Vaz de Carvalho.
Se as máquinas destruíssem por inteiro a classe dos trabalhadores assalariados que espantoso seria isto para o capital que sem trabalho assalariado deixaria de ser capital.
1 – Novas formas de produção
A economia digital prossegue avanços tecnológicos anteriores como não podia deixar de ser. Traz contudo elementos de certo modo novos e leva os anteriores a níveis críticos. A aceleração do desenvolvimento tecnológico na segunda metade do século XX deu origem a um enorme crescimento do capital fixo investido por posto de trabalho (nos últimos 40 anos do século XX terá sido multiplicado por 10). O que coloca problemas quer económicos, pelos montantes necessários para concretizar a chamada “4ª revolução industrial”, quer sociais pelo desemprego que origina.
O aprofundamento da automação leva a que as instalações poderão operar praticamente sem presença humana: apenas um trabalhador sentado numa sala de comando que pode estar a milhares de quilómetros e verificar – sem se mover – os painéis de controlo e condução de toda uma unidade fabril ou serviço. No limite, teríamos mesmo robots a construírem robots, a vigiarem robots, a programarem robots, etc. Mesmo a manutenção dos equipamentos pode ser processada por computador e realizada por robots através de cálculos RAMS ou equivalente. [1] Seria o tão desejado fim da classe operária e do proletariado em geral, o fim da luta de classes, o enterro do marxismo – o domínio absoluto do grande capital.
O neoliberalismo aparece como a manobra ideológica mais adequada ao domínio das transnacionais (TN). As tecnologias avançadas acentuam a concentração monopolista devido aos capitais em jogo e ao domínio dos mercados necessário para concretizar e tornar rentável a “revolução” tecnológica.
As TN detêm uns 90% das patentes das tecnologias ligadas a estes processos. Em seu apoio a OMC e os tratados de “comércio livre” impõem políticas em que o saber e o conhecimento são mercantilizados mesmo quando essenciais à vida humana e à sobrevivência dos povos, impedindo a transferência tecnológica e uma nova ordem mundial de cooperação.
Assim, regra geral, após dominada a investigação aplicada e avançado ou mesmo concluído o desenvolvimento experimental com apoios estatais, os processos tecnológicos passam a ser dominados pelas grandes empresas onde têm lugar ações de inovação, regra geral limitando-se a alguns pormenores nas características dos produtos, que a publicidade em larga escala exalta.
As tecnologias mais avançadas foram e são conseguidas a partir da ação governamental direta ou indireta, através de subsídios, encomendas, designadamente no campo militar, legislação e proteções de vária ordem, como a regulamentação sobre patentes já referida.
2 – Que sociedade, que capitalismo
Um estudo da Universidade de Oxford considera que 47% dos postos de trabalho estão em risco. Outros estudos concluem que um terço dos postos de trabalho será perdido para robots durante os próximos 10 anos. [2] Há quem conteste dizendo que novos postos serão criados…pelo menos até outros computadores e robots não desempenharem essas funções.
De qualquer forma milhões de trabalhadores serão dispensados com estas tecnologias. Porém, se o desenvolvimento tecnológico (DT) exige trabalhadores mais qualificados também dá origem à desqualificação do trabalho de muitos outros: “Dizem-nos que os trabalhadores a quem a maquinaria torna desnecessários encontram novos ramos em que trabalhar (…) uma massa de trabalhadores expulsos de um ramo industrial não vai encontrar refúgio noutro a não ser com salários mais baixos, piores”. (Marx, Trabalho assalariado e capital)
Os defensores desta “revolução digital” não deixam de exigir que seja servida por “pessoal qualificado e flexível”, quem não se adaptar enfrentará “o desemprego e a desigualdade salarial”. Nos planos do patronato o conceito de segurança no emprego tem de ser eliminado. O trabalhador tem de estar preparado para mudar de empresa, ter horário parcial, estar no desemprego.
É uma “revolução tecnológica” que vê a flexibilidade laboral como uma virtude. Mas para isto não era necessário nenhuma “revolução”, foi desde sempre o objetivo do grande capital. O patronato e os ideólogos da CIP dizem que a relação com o trabalho tem de ser muito diferente do passado e que “os sistemas de segurança social estão desatualizados”. Mas isto é afinal o retorno ao século XIX referido por Marx em O Capital: ” (segundo a burguesia) abaixamento do salário e longas horas de trabalho é este o núcleo do comportamento racional e saudável que há de elevar o operário à dignidade de consumidor racional”.
O patronato parece consciente dos problemas sociais que esta louca corrida ao aumento da taxa de lucro irá criar. A CIP considera “fundamental preservar as reformas implementadas nos últimos anos, no sentido de favorecer a competitividade das empresas e a sua adaptabilidade às constantes alterações dos mercados, bem como avançar com novas medidas que reforcem esse objetivo”, as alterações ao Código do Trabalho devem ser “absolutamente irreversíveis”.
Por outras palavras, a “virtude” laboral propugnada pela política de direita consiste no fim da contratação coletiva, na precariedade permanente. Como disse Engels: “com o capitalismo a insegurança (dos trabalhadores) aumenta sempre. (Critica ao Programa de Erfurt).
Ora esta “revolução” tecnológica coloca o capital perante a perspetiva de mais crise. Se o lucro não for utilizado na esfera produtiva é a crise, se for utilizado corresponde a uma maior composição orgânica do capital e daqui à baixa da taxa de lucro e à crise. Se não houver uma transferência de rendimentos (salário direto e indireto) para os trabalhadores acompanhado de planeamento económico temos desemprego e…crise.
Para evitar a queda da taxa de lucro o capitalismo procura lançar-se numa insensata busca de “competitividade”, assumida como um bem, mas que não é outra coisa senão uma guerra mundial económica e financeira que o sistema lança para sobreviver à sua decadência à custa dos trabalhadores e MPME.
O mais chocante é que para os defensores deste “progresso”, não existem pessoas dotadas de vontade e aspirações. Os trabalhadores têm de ser uma espécie de “plasticina” moldada ao sabor de uns seres superiormente iluminados que, como no fascismo, sabem “o que é melhor para Portugal e os portugueses”. Mas é evidente que não é possível qualquer progresso na base de uma pretensa elite que se limita a reproduzir as últimas especulações dos centros imperialistas.
Admitem contudo que a maior dificuldade para os seus planos é o sindicalismo de classe. Assim, o ideal seria um Estado sem poder democrático, sem sindicatos (ou sindicatos como a direção da UGT), partidos cujo papel que lhes é atribuído é iludir as massas populares – reprimi-las se necessário – e gerir os interesses da oligarquia, servindo-se da austeridade para compensar tudo o que a “desmotiva”.
3 – Um novo modo de produção pós-capitalista ou uma nova forma de capitalismo.
Em “Utopia 14”, Kurt Vonegut apresenta uma sociedade tecnologicamente muito desenvolvida em que uma reduzida elite de técnicos comandava todos os processos. À restante população, praticamente abandonada à sua sorte, eram dados trabalhos desqualificados para a sua sobrevivência, como varrer ruas, limpezas, etc. O livro trata da revolta destes seres “excedentes”.
É perante o cenário da Utopia 14 que esta “economia digital” nos coloca. Que espécie de sociedade resultará deste processo? O quê e em quem reside o saber quando este estiver (quase) totalmente alojado nos circuitos dos computadores?
Que aconteceria num sistema em que o capital variável (os trabalhadores) fosse eliminado? Como disse Marx, sem operários o capital deixaria de ser capital. Na expressão C’ = c+v+m, se v= 0 também m=0 e a taxa de mais-valia t = m/v viria t= 0/0, portanto uma indeterminação com valor qualquer de zero a infinito. O levantamento desta indeterminação e o cálculo de t dependerá da análise das funções m e v que contudo não podem considerar-se contínuas e lineares (erro habitual na econometria), dado que dependem de factores políticos, económicos (crises) sociais (lutas dos trabalhadores).
Sem aprofundar esta questão podemos considerar que uma sociedade globalmente sem intervenção de trabalho humano é um absurdo. Porém, se em capitalismo é impossível v=0 e m=0, podemos admitir uma sociedade em que embora haja trabalho humano sejam v=0 e m=0, será a sociedade comunista, embora tal não se verifique ainda no socialismo.
Em termos capitalistas, certas empresas e certos sectores intensificarão mais que outros a automação dos processos, obtendo maiores taxas de lucro, o que contudo só será possível durante um limitado espaço de tempo à medida que as de menor produtividade desapareçam. Como se sabe o crescimento do capital constante impõe a nível macroeconómico a descida da taxa de lucro.
Mas para haver lucro é preciso haver quem compre e a questão é: quem compra produtos à medida que se reduz a força de trabalho? Claro que haverá sempre trabalho passado incorporado nos equipamentos, na configuração dos sistemas, na I e D, na avaliação de aspetos da qualidade Estamos porém perante um cenário idêntico ao de “Utopia 14”, uma sociedade que se afasta do anterior quadro capitalista e penetra num caos de sobreprodução, guerras comerciais e tecnológicas, em que grandes TN sobrenadam num oceano de pobreza e desigualdades, mesmo nos países dominantes, levando ao limite os cenários e situações que se têm agravado constantemente.
4 – Economia política e política económica
O neoliberalismo eliminou a economia política não só do seu léxico, também da sua maneira de pensar, reduzindo a política, e portanto a sociologia e a própria democracia, a técnicas supostamente perfeitas e sem alternativa, camuflando políticas conservadoras e reacionárias.
Não podemos confundir economia política com políticas económicas. Para o marxismo a economia política estuda as leis do desenvolvimento das relações de produção e de distribuição. É a partir daqui que a política económica estabelece os seus objetivos.
Não são apelos e boas intenções metafísicas para contentar os “mercados”, que resolverão quaisquer problemas económicos e sociais, pelo contrário têm-nos agravado. A implementação dos processos tecnológicos tem de ser avaliada nas consequências para as pessoas, para a sociedade em geral, para os povos. Para que o DT não cause desemprego, desigualdades, crises, é necessário que seja suportado por uma estrutura económica e social coerente, e isto é do domínio da economia política.
Para a social-democracia a luta de classes e a exploração capitalista seria substituída pela “qualificação”, ou seja: uma categoria secundária, a profissional, é sobreposta à categoria fundamental: a condição proletária. Ora o que se tem verificado é que dentro do sistema capitalista a formação representa a disponibilidade de força de trabalho mais qualificada e mais barata. Entre 2011 e 2015 o salário médio dos jovens licenciados (25-34 anos) reduziu-se 12,4%. [3]
Será correto dizer que o DT provoca o desemprego? Pode provocar, como pode provocar poluição e degradação do ambiente. Pode provocar, mas também pode evitar, reduzir, melhorar. O problema não são as tecnologias em si mesmas, mas o sistema económico e social que as utiliza, portanto as formas de economia política adotadas.
As tecnologias de elevada produtividade (um máximo de produção para um mínimo de trabalho) exigem consumo massivo. Mas o consumo exige que a riqueza produzida entre rapidamente no circuito de distribuição por acrescida repartição de riqueza. O planeamento económico e a redistribuição do rendimento são fundamentais.
Por consequência, o DT não só permite como exige para o progresso atual e futuro, a melhoria da qualidade de vida, a eliminação da pobreza, a difusão da cultura, a redução do tempo de trabalho, uma maior abundância de bens e serviços para as camadas trabalhadoras. No sistema capitalista estes objetivos tornam-se contraditórios.
O DT tem de ser considerado não só uma forma de criação de riqueza mas um fenómeno cultural, e desta forma incentivado, protegido e difundido. O apoio às atividades de I e DT significa prestigiar o trabalho dos que se dedicam a estas atividades.
Um Plano de DT não é apenas uma prioridade é uma emergência. O DT terá de fazer-se em função das necessidades sociais e não da maximização do lucro. O DT torna ainda mais evidente a necessidade de planificação económica em função dos benefícios sociais.
Para o capitalismo o DT é necessário para obstar à queda da taxa de lucro, mas é também factor de crise; para o socialismo o DT é condição necessária à passagem a fases socialmente superiores da sua própria evolução.
Fonte: IELA.