Daniel Canavese em entrevista a Gabriel Brito, Outras Palavras.
Em queda no mundo, os casos da mpox, popularmente conhecida como varíola dos macacos ou nova varíola, se mantêm estáveis no Brasil. Com foco epidemiológico em portadores de HIV/aids e na população LGBTQIAP+, a doença não recebeu a devida atenção do governo de Jair Bolsonaro. E isso tem tudo a ver com a aversão do ex-presidente a tal público.
“Ele fez analogias e piadas nesse sentido. Portanto, quando o governo anterior ajudou a agudizar a desinformação, ampliou as questões de estigma e discriminação, e ampliou as violências, como a LGBTfobia estrutural. O discurso oficial do governo Bolsonaro ampliou e agudizou situações de preconceitos”, explicou Daniel Canavese, pesquisador de saúde coletiva LGBTQIAP+, ao Outra Saúde.
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A afirmação de Canavese é corroborada por um amplo estudo da revista The Lancet em parceria com o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz. Trata-se de uma coletânea de artigos que compõem o número 17 da revista que a Lancet publica sobre saúde nas Américas.
“No Brasil, a falta de comprometimento das lideranças com a emergência pode ter favorecido a explosão de casos. Declarações homofóbicas pelo então presidente Bolsonaro durante os piores momentos do surto cimentou a estigmatização da doença, e o país agora tem escassez do único tratamento aprovado nacionalmente (Tecovirimat) e demora na chegada das doses da vacina”, sintetiza o editorial do trabalho.
Diante disso, não surpreende que o governo brasileiro tenha oferecido uma resposta tímida e descoordenada à epidemia, que conta com 10.715 casos e 15 óbitos, atrás somente dos Estados Unidos no planeta. Apesar de adquirir um lote de 50 mil vacinas para a enfermidade, o ex-ministro Marcelo Queiroga colocou profissionais de saúde como alvos prioritários da imunização. Mas em momento algum este grupo social apareceu como o mais vulnerável à infecções. Para piorar, como mostrou matéria do Jota, apenas 9,8 mil doses chegaram ao Brasil até dezembro. E o ministério da Saúde, que prometera ao menos 20 mil doses disponíveis em outubro, jamais voltou a tocar no assunto.
Na entrevista que concedeu ao Outra Saúde, Daniel Canavese, também professor da UFRGS, aproveitou para fazer um balanço mais amplo do governo Bolsonaro e os quatro anos de políticas de saúde voltada à população LGBTQIAP+. Não há espaço para dúvidas: a homofobia do neofascista se traduziu em retrocesso deliberado em todas as áreas relacionadas ao direito à saúde deste público.
“Falta de investimentos em pesquisas direcionadas a essas populações-chave, falta de representatividade dessas pessoas em posições-chave, falta de protagonismo de implementação da política nacional de saúde integral LGBT, política que especificamente tem ainda uma série de lacunas que nos últimos quatro anos não foram discutidas nem ampliadas. Exemplo disso é o processo transsexualizador, uma falta apontada da necessidade de tal política, que é a formação de profissionais de saúde capazes de dirimir barreiras, situações de estigma e discriminação. Não houve nenhum investimento na formação de profissionais de saúde nesse sentido”, listou Canavese.
Com a mudança de governo, o Brasil, em sua visão, dispõe de todas as condições de eliminar o surto de mpox, como a doença passou a ser definida pela OMS justamente para combater as estigmatizações. Mais que isso, o pesquisador também destaca ser hora de o país definitivamente inserir dados de gênero e orientação sexual dos pacientes do SUS.
“Não dá pra gente fazer planejamento em saúde sem discutir situações específicas, sem a perspectiva de incorporar esses marcadores na determinação social da saúde. Isso possibilita uma análise epidemiológica que permite compreender quem é a população mais vulnerabilizada, onde precisam ser colocados os maiores investimentos e os enfoques de política de saúde”.
Como está a mpox no Brasil neste momento? Por que há uma queda regular de casos no mundo, mas as infecções se mantém em nível alto por aqui?
De acordo com dados disponibilizados pelo ministério da Saúde (ver aqui), coletados até outubro do ano passado, as características epidemiológicas e clínicas dos casos e conforme organizado pela Secretaria de Vigilância e Saúde no Brasil, o surto ainda está concentrado em pessoas do sexo masculino, homem cis, jovens, que têm um comportamento de fazer sexo com homens. Está também relacionado com o fato de serem imunossuprimidos ou viverem com HIV. Essa perspectiva de panorama epidemiológico apontada por dados do ministério da Saúde é semelhante à de outros países que tiveram o surto.
As características que os dados recentemente trazem é de uma maior concentração nos casos na região Sudeste, justamente porque são centros urbanos, e essa infecção surge pelas grandes capitais da Europa, para depois se espalhar por outras grandes cidades urbanas. Aqui, no Rio Grande do Sul, percebemos: o surto ainda está restrito à região metropolitana.
No geral, os dados do ministério da Saúde demonstram que a tendência é de declínio, como tem acontecido internacionalmente.
Uma publicação da Nature em parceria com o Instituto de Infectologia Evandro Chagas conecta a persistência da mpox com a homofobia de Bolsonaro, o que teria se refletido na atuação do Estado. Você concorda com essa tese?
A homofobia de Bolsonaro e do governo anterior tem relação, assim como a política de desinformação, de favorecimento da ignorância, do uso das fake news e das informações equivocadas. Isso também aparece no caso da mpox, nome que passamos a utilizar para evitar situações de estigmas, algo que se mostrou muito contundente, com exemplos concretos, como aquelas comunicações que o presidente fazia associando a vacina disponível pra mpox como uma vacina que iria ser tomada por um grupo muito específico, isto é, o grupo de gays. Ele fez analogias e piadas nesse sentido.
Portanto, quando o governo anterior ajudou a agudizar a desinformação, ampliou as questões de estigma e discriminação, e ampliou as violências, como a LGBTfobia estrutural. O discurso oficial do governo Bolsonaro ampliou e agudizou situações de preconceitos.
E, sem dúvida nenhuma, o governo anterior se isentou de organizar uma comunicação muito mais efetiva de enfrentamento a situações de estigma e discriminação. É um fato.
O que pensa da decisão do governo anterior sobre a forma de distribuir as 20 mil doses de vacinas adquiridas em especial entre profissionais de saúde, sem nunca ter mencionado a população que efetivamente mais se infectava?
A distribuição das vacinas sempre tem sido uma preocupação, no sentido de que precisamos ter um conhecimento concreto do perfil epidemiológico, de como o surto está no Brasil hoje, pra que a gente possa pensar justamente na distribuição das vacinas, a exemplo do que tem acontecido internacionalmente, onde, baseado no perfil epidemiológico, priorizou-se populações-chave.
No mundo, priorizou-se em alguns momentos pessoas que vivem com HIV, por terem possibilidade de desfechos mais graves. Há bons exemplos de sistemas de saúde, como o Canadá, ou os Estados Unidos, na distribuição das vacinas.
Poderíamos realizar isso, alicerçados com a vigilância, ou seja, com o perfil epidemiológico. É o que de fato permite avançar na contenção do surto. Felizmente, agora temos uma retomada de vários aspectos no ministério da Saúde que vão permitir um planejamento epidemiológico mais adequado para a distribuição das vacinas. O enfoque precisa ser planejamento alicerçado na ciência.
Como pesquisador de saúde coletiva de grupos LGBTQIA+, como você resume a atuação em saúde do governo anterior ao longo de seus 4 anos de mandato em relação a esta população?
O panorama do governo anterior é ratificado por diversos pesquisadores e pesquisadoras, por diversas organizações da sociedade civil. Com falta de investimentos em pesquisas direcionadas a essas populações-chave, falta de representatividade dessas pessoas em posições-chave, falta de protagonismo de implementação da política nacional de saúde integral LGBT, política que especificamente tem ainda uma série de lacunas que nos últimos quatro anos não foram discutidas nem ampliadas.
Exemplo disso é o processo transsexualizador, uma falta apontada da necessidade de tal política, que é a formação de profissionais de saúde capazes de dirimir barreiras, situações de estigma e discriminação. Não houve nenhum investimento na formação de profissionais de saúde nesse sentido.
Podemos citar um outro aspecto importante, que é justamente o investimento em espaços de saúde de cuidado específicos dentro do Sistema Único de Saúde para as pessoas trans e não binárias, como os ambulatórios T, que precisam ser ampliados. Isso não aconteceu nos últimos anos, é uma demanda importante que tem sido apontada.
O balanço que nós fazemos é, de fato, de uma lacuna muito grande, que agora persiste, precisamos frisar, porque espaços do próprio Ministério da Saúde foram desmontados, como departamentos inteiros de promoção das políticas de equidade ou de enfrentamento de HIV e aids. No próprio relatório de transição tivemos isso ainda mais reforçado. São urgências e demandas que agora recaem sobre o novo governo, que felizmente já está colocando muito disso em movimento.
Temos pesquisas e publicações concretas a respeito de todo esse balanço do governo anterior a respeito do direito à saúde da população LGBTQIAP+.
Quais as consequências disso para o atual governo?
Há desafios e lacunas que o governo atual recebe, na esteira do que falamos aqui. Felizmente, o primeiro mês nos deixa animados em razão de respostas que foram dadas, a exemplo da recuperação de um departamento de enfrentamento da questão do HIV e aids. Profissionais competentes estão assumindo pastas importantes do ministério, como a sanitarista Alicia Krieger, que vai trabalhar na perspectiva transversal das políticas de equidade dessas populações, um fortalecimento da informação em saúde voltada a diferentes grupos populacionais.
Encaramos o momento, principalmente pela participação dessas profissionais, como algo bastante potente, positivo, esperançoso. Vemos profissionais de muita qualidade e competência na área, o que nos permite imaginar um cenário realmente de reconstrução, de refação, ampliação das ações que foram estagnadas nos últimos anos.
Como o atual governo deveria agir em relação à mpox para diminuir o número de infecções e conter essa emergência epidêmica?
O governo atual tem muita capacidade técnica de verificar qual vai ser a melhor forma de enfrentamento da mpox. É importante, volto a dizer, a análise do perfil epidemiológico da população infectada pelo vírus. Essa é uma competência importante do governo, assim como o investimento em vacinas e a definição de grupos prioritários pra vacinação, com campanha e produção de materiais de informação em saúde. Vemos agora o ministério muito ocupado com a questão da literacia em saúde, como se vê nas redes sociais, como por exemplo no Instagram, com uma produção intensa de material pra grupos populacionais ampliados, de fato a informar e permitir que nos ocupemos com dados que subsidiem mudanças de práticas.
O novo governo tem o desafio também de retomar a campanha de comunicação em relação a mpox, verificar como atingir um público ampliado, como de fato dar proteção para esse perfil, que tem aparecido nos dados epidemiológicos como o mais vulnerabilizado: homens, gays, pessoas vivendo com HIV.
Nesse sentido, é uma oportunidade ímpar de o governo reconhecer a necessidade de definitivamente implementar nos sistemas de informação de saúde os campos de identidade de gênero e orientação sexual. Não dá pra gente fazer planejamento em saúde sem discutir situações específicas, sem a perspectiva de incorporar esses marcadores na determinação social da saúde.
Qual a importância estratégica de se garantir a informação desses campos de identidade no SUS?
Conforme o IBGE, já temos uma padronização na área da saúde e seus formulários. Fazemos a coleta dos dados conforme o IBGE estabelece, classificando a raça entre branco, preto, pardo, amarelo e indígena no sistema de informação. Há a Portaria 344/2017 do ministério, que estabelece como obrigatório o registro de raça/cor em todos os sistemas de informação. É muito importante para que a gente não deixe de fazer as análises estratificadas. Isso possibilita uma análise epidemiológica que permite compreender quem é a população mais vulnerabilizada, onde precisam ser colocados os maiores investimentos e os enfoques de política de saúde.
Hoje, a gente não consegue fazer porque não tem o registro de identidade de gênero, uma lacuna, uma falta de dados sobre as pessoas trans, as travestis. E a mesma coisa vale para orientação sexual. Não temos sistema de informação e coleta desses dois campos, que são identidades autodeclaradas. A única possibilidade de coletar esses campos é na ficha de notificação de violência.
Assim, veja o quão importante é um registro apurado de orientação sexual e identidade de gênero, porque da maneira atual só acessamos tais informações em situação de excepcionalidade, e porque internacionalmente estava sendo feito assim. Nos vários outros agravos, não coletamos os dados de orientação sexual e identidade de gênero.
Em suma: o preenchimento de tais campos de informação são importantes para o planejamento epidemiológico e a vigilância em saúde. Isso deve ser expandido no SUS.