Nova peça de Antonio e Rocco Pitanga discute memória deletada da população negra

Em entrevista ao Brasil de Fato, pai e filho falaram sobre a peça em cartaz “Embarque Imediato”

Por Caroline Oliveira

omo se eu não fosse brasileiro e também não sou africano. Qual é a minha identidade?”, questiona Antonio. – Caroline Oliveira

A identidade é o todo inteiriço do ser humano. É o que preenche os interstícios das passadas e palavras. É também a unicidade de cada tempo no corpo e no semblante. Antonio Pitanga é negro. No meio da concretude da história e de saber quem se é, no entanto, firma-se o vazio de se perder na enxurrada do presente urgente e imediato, no vazio identitário de ser somente afrodescendente.

“Como se eu não fosse brasileiro e também não sou africano. Qual é a minha identidade? Se eu não me reconheço como braço construtor desse país, parte integrante, de repente eu sou mais imigrante do que o imigrante, do que o alemão, austríaco, francês, português, holandês. Eu sou brasileiro.”

Pitanga é braço construtor, brasileiro. Mas isso lhe negam. Pitanga também tem descendência africana, mas isso também lhe negaram quando Ruy Barbosa queimou documentos sobre a escravização de negros africanos, queimando assim suas origens. É nessa busca pelas origens e identidade que pai, filho e filha, Antonio, Rocco e Camila Pitanga, contracenam na peça teatral Embarque Imediato, numa narrativa que confunde o que é real com o que é encenação.

“São três atores em cena, negros, e um pouco desse tema, desse projeto, dessa peça é um pouco da minha vida. Eu fui para a África, fiquei dois anos, e estou falando ao vivo para os meus filhos e para a plateia um pouco da minha caminhada. Eu não fui visitar a África, eu fui buscar informação de que África eu tinha vindo. Não basta eu só dizer de que África eu sou descendente. Eu quero saber de qual país eu vim, desse continente de mais de 54 países.” contou Antonio em entrevista ao Brasil de Fato sobre seu próprio embarque imediato.

A peça se dá em uma sala de um aeroporto internacional, em meio a um “clean” que deixa o personagem de Rocco em um desespero por sinais que o tirem dali, e o de Antonio numa calmaria anciã. De um lado, o jovem a caminho da Europa, em busca de seu doutorado, numa caminhada ocidentalizada e moderna. Do outro, a paciência de quem sabe que “alguma coisa segue seu curso”.

Ambos foram deixados ali por perderem o documento de identidade, passaporte, registro geral. Na espera pelos documentos, discutem a identidade que luta para se firmar. “A identidade está no início, na trajetória ou no final? Onde está a sua identidade de fato? Ou no final? Quem é você? Você é o seu RG? Qual é a data de expedição do RG? São a mesma coisa?”, questionam durante a peça.

“Nessa caminhada, há uma tragédia. Há uma memória que é deletada, é dizimada”, afirma Antonio. Na mesma toada Rocco, cujo personagem assume diversas identidades num ritmo ocidentalizado, diz:

“Estamos indo ou estamos levando? O cidadão mais jovem está sendo levado e provocado pelo cidadão mais velho para ele entender quem ele é. E a partir daí profetizar o próprio caminho”, diz.

Para Rocco, a dificuldade de seu personagem é acreditar que é um jovem europeu. “Ele está indo para a Europa buscar outras fontes e completamente desligado da sua raiz, da sua terra, do seu planeta terra”, conta.

Na contramão, Antonio traz às luzes baixas do teatro, a história: quem matou Martin Luther King, quem tirou a vida de Malcolm X, quem afundou os navios negreiros no mar? Num lapso, Rocco vem e a atualiza a história com Marielle, mostrando que o passado é estático, mas se repete.

“E aí dá para ele entender e chega nos dias de hoje. Quem matou Mestre Moa, porque matou, ou matou Marielle. Quer dizer, atualiza e interage com a plateia que não fica só no passado”, afirma Antonio.

A peça tem texto de Aldri Anunciação e encenação de Marcio Meirelles. Ao fundo, a voz de Camila Pitanga, num tom fantasmagórico, representando o aeroporto, impondo ordens e limites.

Antonio e Rocco já pensaram em outras análises para a mesma peça: “A gente já chegou nesse lugar. Se o cidadão mais velho talvez seja a própria consciência dele. Um momento de consciência. Ele passa uma hora de espetáculo onde todos esses conflitos aparecem na cabeça dele. Um momento de consciência talvez”, afirma Rocco. Antonio complementa: “Uma coisa shakespeariana, hamletiana. Você está vivo? É um fantasma? É ele mesmo ou é a consciência? Eu não existo. Naquela sala clean.”

Importantíssima e atual

No passado que se repete, Antonio afirma que a peça é “importantíssima e muito atual politicamente. Hoje, um país virar de cabeça para baixo na questão racial. Um presidente que não gosta de negro, não gosta de mulher de LGBT, de índio. Aqui é uma tese, um debate. A gente tem que se manter vivo e a nossa contribuição é através do que a gente escolheu: teatro”.

Sobre o atual governo brasileiro, o patriarca, um dos formadores do Cinema Novo, afirma que é mais um vento que está ventando, “e pode ventar todos os ventos do mundo que estaremos aqui de pé”. Com 80 anos, ele entende o seu país, assim como seu personagem entende a história, e ambos estão vivos. “Ninguém chega a 80 anos por um acaso, e negro. É como a arte da guerra, você trabalha com a guerra do outro. Meu foco está na frente. Como dizia Guarnieri, liberdade é pegar o sol com a mão”.

Em consonância com o pai, Rocco afirma que há uma tentativa, hoje, de censurar o pensar fora do que é o padronizado. É o Brazil matando o Brasil, sua identidade e suas histórias, numa analogia à própria peça. “Eu acho que continuo Antonio e vou morrer Antonio. Eu fico muito emocionado quando eu vejo caras pretas aqui na plateia bebendo na fonte da história”, conclui Antonio.

A peça fica em cartaz até o dia 8 de março, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, em São Paulo.

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