Nova ordem mundial do narcotráfico: como o negócio se expandiu para a América Central e do Norte?

© AP Photo / Fernando Vergara

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Novos atores contribuem para a diversificação do “mercado da droga” nas Américas. Antes concentrado nos países andinos, o cultivo da matéria-prima se estendeu para o os vizinhos das Américas Central e do Norte. Em entrevista ao Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, especialistas discutem a expansão deste mercado ilegal e seus desdobramentos.

“Segundo um relatório que foi emitido ano passado pela OCCRP, a Organized Crime and Corruption Reporting Project, existe uma nova ordem mundial do tráfico“, conta Renata Alvares Gaspar, especialista em América Latina e professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Nesse cenário, despontam países da América Central e América do Norte, com destaque para Guatemala, Honduras e México, além de El Salvador e Panamá.

“A América Central e outros países andinos eram apenas rota. Agora já há plantações de folha de coca nesses Estados. No México e na Guatemala aumentou muitíssimo. Nos países centro-americanos, por uma confluência de aspectos, também se consolidaram nessa nova ordem mundial do tráfico de drogas. E Panamá também entra, pela mesma razão que o mercado de coisas lícitas precisa do Panamá, que é rota de escoamento. Liga o Pacífico ao Atlântico”, analisa.

A especialista ressalta ainda que esses mercados atuam como empresas transnacionais, mas de artigos ilícitos. Como se trata de um mercado ilegal, estratégias de guerrilha são adotadas para tocar o negócio. Como exemplo, Gaspar cita como as facções criminosas que comandam o narcotráfico cooptam pessoas para aderirem ao sistema.

O plantio de coca, que aumentou na Guatemala e no México, se dá em regiões onde vivem populações camponesas que sobreviviam do plantio de outras coisas menos lucrativas, mas que se veem obrigadas a obedecer os mafiosos.

“Como eles obrigam? Como as máfias fazem. Plata o plomo (dinheiro ou ‘chumbo’). É exatamente essa expressão que se usa”, explica a professora sobre as ameaças que são feitas a esses camponeses.

Uma das razões para a diversificação desse mercado em expansão, segundo Gaspar, foi o acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). “Os dissidentes, que não aceitaram esse acordo, transformaram o que era um monopólio no mercado diversificado“.

Outro fator elencado por Gaspar foi a necessidade da região em aumentar o plantio de folha de coca frente à crescente distribuição do fentanil, droga sintética que se popularizou e atingiu alta demanda de consumo, sobretudo nos Estados Unidos.

Questões políticas também influenciam no mercado de drogas?

Para a especialista, este é um eixo central, mas pouco falado publicamente. Segundo ela, é preciso descortinar que a questão das drogas tem muito a ver com a democracia representativa e o sistema econômico.

“As democracias representativas foram um meio adequadíssimo, por exemplo, para os países centro-americanos adequarem e consolidarem o mercado de drogas ilícitas. Por quê? Porque eram países que vinham de uma redemocratização de sistema autoritário para sistema democrático”.

São características desses países, segundo Gaspar, uma elite política que não se considera latino-americana, mas europeia, e que precisa de dinheiro para se estabelecer. Com a ausência de industrialização forte, o mercado do narcotráfico acaba sendo o caminho “mais fácil” para obter esse dinheiro.

“Então as democracias representativas são um veículo importante para a consolidação em países com institucionalidade baixa, com pouco desenvolvimento social, e já com essa tradição, porque a gente tinha aqui perto países que se dedicavam a isso. Então eu acho que a gente não pode falar de questão de droga, de nova ordem do mercado, de drogas ilícitas, do mercado de cocaína, sem falar do nosso sistema econômico e sem falar dessa nova droga sintética chamada fentanil”, analisa.

Em síntese, Gaspar avalia que o poder político em alguns países andinos e na América Central se sustenta a partir do narcotráfico. “Não haveria poder político se não houvesse a consolidação desse mercado polpudo e milionário que permite essa consolidação”.

Em relação ao sistema econômico, a especialista o avalia como um “fio condutor bárbaro” para o consumo de drogas. Como exemplo, ela cita os EUA, país de grande poderio econômico e com alto público consumidor de cocaína e, agora, de fentanil.

“Quando a gente olha com uma sensibilidade maior para o desenvolvimento das coisas como elas estão, a gente não se espanta nem com as guerras, nem com o alto consumo de drogas em países como os Estados Unidos, que é padrão histórico de um sistema político patrimonial”.

Por que o combate ao narcotráfico é insuficiente?

O combate ao narcotráfico ainda é, em grande parte, notabilizado pelo discurso de “guerras às drogas”, inflamado pelos EUA a partir da década de 1970, resultando em ações repressivas, especialmente na Colômbia, líder na produção de cocaína.

Para Gaspar, a guerra às drogas não tinha como intenção acabar com o consumo de drogas nos EUA, que começava a viver um boom neste período. A questão é usada como pretexto para que os norte-americanos tivessem uma base de apoio na América do Sul.

“Não tem melhor forma de você trocar apoio do que fazer coisas grandiosas, como costurar acordo de paz, oferecer os seus tribunais para que os narcotraficantes fossem processados, já que as instituições colombianas, nesse particular, não se sentiam autônomas o suficiente por causa desse narcotráfico das Américas”, explica a especialista, destacando um interesse mais geopolítico que propriamente de segurança ou saúde pública.

A ideia de guerra, difundida nos EUA, é um fator que representa o fracasso dessa política apresentada como combate ao narcotráfico, analisa Lenin Pires, antropólogo e professor do departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Eu prefiro pensar que se os Estados Unidos não fossem uma sociedade fundamentada na guerra, na ideia de guerra, a coisa seria diferente. […] Foi na Segunda Guerra Mundial que eles se descobriram para a vocação de uma indústria de guerra”.

A partir daí, Pires avalia que os EUA “aprendem que o que eles têm que fazer em todo e qualquer lugar é guerra“. Na guerra às drogas, estabelecida contra uma substância e seus efeitos, significa para os EUA “desenvolver a indústria armamentista, desenvolver logística, estratégia, fazer com que a presença do exército americano se dê de maneira quase que legitimada”, o que envolve muito dinheiro.

O fracasso dessa política deságua em acontecimentos corriqueiros, dos quais o Brasil também faz parte, que é o surgimento de grupos paramilitares e o envolvimento de agentes de segurança como elos do narcotráfico.

“As forças policiais no mundo inteiro são pressionadas para não só fazer vista grossa para esse mercado, para essas dinâmicas de distribuição de drogas, mas até mesmo se envolver diretamente ou indiretamente. Se envolve indiretamente quando aceita a chamada propina e se envolve de maneira muito direta quando parte de seus agentes atuam no aluguel de armas, na distribuição de armas, ou mesmo fazendo parte de determinados grupos que, de alguma maneira, acabam se vinculando a essas dinâmicas, como o caso flagrante das milícias no Rio de Janeiro” diz o antropólogo.

Há solução para os efeitos nefastos produzidos pelo narcotráfico?

O mercado de drogas se ancora na produção da violência, ou, como cita Gaspar, ele “vive da violência […] porque precisa sustentar seu poder ilegítimo através da força“.

A solução enxergada pela especialista para tentar mitigar os efeitos do narcotráfico é “discutir a governança global”, com uma agenda política internacional, uma vez que se trata de um mercado internacional. Ela destaca, no entanto, que esse é um problema complexo e não exige fórmula mágica.

Para Pires, a continuidade de um sistema unicamente repressivo, que mira pessoas pobres, pretas e faveladas, é “fundamentalmente enxugar gelo“. Ainda, em um cenário neoliberal, onde a educação pública é desqualificada por um lado, “injeta em segmentos mais jovens uma desesperança e, no meio de tudo isso, tem um mercado pujante de droga“, diz.

Além da zona cinzenta, onde o Estado não chega e o crime organizado se situa como poder paralelo, os especialistas também apontaram um estado mínimo para questões sociais e mais presente na forma repressiva como um problema a ser superado.

A possível reversão do cenário passa, de acordo com Pires, por um olhar mais criativo por parte dos governos sobre o assunto.

“O grande problema que envolve as políticas dos governos, que são políticas executivas, é procurar enxergar essa realidade apenas com uma lupa, que é geralmente a lupa do chamado direito que, no Brasil, é um direito repressivo, feito de cima para baixo, por classes mais bem aquinhoadas, que, como eu falei, são classes que são intolerantes com a diferença, particularmente a diferença moral, a diferença ética, estética de classe, e que tem na sua história o ranço do racismo”, aponta o professor, destacando que essa dinâmica redunda em práticas de reclusão e precisa ser superada.

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