(ou: porque nós somos assim e eles são como são)
Anin Urasse
Por Gilza Marques.
Se alguém chegasse pra você e dissesse: “te dou 100 milhões de reais pra pegar uma criança branca, amarrar cada membro dela em um cavalo e chicotear os cavalos até vê-la ser desmembrada viva” você faria? Eu não faria. Sob nenhuma hipótese eu faria. Minha criação, os valores a partir dos quais eu fui formada, minhas crenças…me impedem de fazer algo tão desumano por lucro. Mas eles fizeram.
Mesmo a gente sabendo das atrocidades que foram (e são) cometidas durante os últimos 500 anos com nossas crianças (e não só), nenhum movimento preto, por mais “radical”que tenha sido (alguns até pedindo “morte aos brancos!”), nenhum de nós assou crianças brancas no espeto. Nenhum pregou o linchamento delas; que se arrancassem os olhos delas. Nunca colocamos crianças brancas como iscas de crocodilo, mas eles fizeram tudo isso. Por que eles fizeram, afinal?
Esse texto é pra questionar a premissa equivocada de que o LUCRO, pura e simplesmente, justifica a escravização, o colonialismo, o imperialismo, o racismo e o genocídio – e que portanto com o fim do capitalismo o racismo acaba. Essa é uma premissa falsa.
Nós africanos chegamos na “américa” antes de colombo (aliás, a chegada de colombo na “américa” só foi possível dadas as rotas comerciais que africanos já faziam cerca de 200 anos antes). Quando a gente chegou aqui, não chegamos barbarizando os “indígenas”, derrubando a mata, estuprando as mulheres. Antes, estabelecemos trocas comerciais e até desenvolvemos civilizações por aqui – como é o caso dos Olmecas. Trocamos tecnologia – a mesma técnica de “embalsamar” utilizada pelos “indígenas” se usava no antigo Kemet, por exemplo; fizemos comércio – objetos produzidos na África Ocidental eram comercializados nas “américas” e líderes “indígenas” ostentavam armas e adornos feitos na África; africanos que chegaram aqui através do que os “indígenas” chamavam de “correntes negras” (correntes marítimas no Oceano “Atlântico” que facilitam o trânsito costa africana-costa “americana”). Estamos presente até nas mitologias de alguns povos indígenas que falam sobre a chegada de seres humanos pretos, os primeiros habitantes do mundo.(1)
Apesar de quererem vender a ideia de que estávamos todos nus na África brigando uns com os outros em tribos, a gente tá falando da existência de civilizações africanas que no século 12, por exemplo, possuíam prédios de 5 andares. Nós chegamos à Ásia também. Muito antes dos europeus, obviamente. Nós teríamos condição de “colonizar” se quiséssemos. Mas por que não fizemos? Veja bem: nós chegamos aqui e não exterminamos 90% da população indígena. Por quê?
Quando uma pessoa diz pra gente que a queda do povo negro se deu devido ao lucro, ao capitalismo e tal…., ela esquece de um detalhe: O LUCRO A QUALQUER CUSTO TAMBÉM É UM DADO CULTURAL. “Lucro” (ou “capital”, ou o que quer que seja) por si só não explica o racismo (que, como sabemos é ANTERIOR ao capitalismo), e esse tipo de análise falha em não levar em consideração um dado fundamental: a CULTURA. As crenças. Os valores. Nós chegamos aqui e não matamos 90% da população indígena porque os valores da nossa sociedade NÃO PERMITIAM. Por isso a CULTURA é tão central dentro dos estudos da Afrocentricidade.
Diop foi quem caracterizou os berços civilizatórios europeu e o africano. O povo proveniente de um contexto de escassez, de poucas terras, de recursos naturais limitados, é um povo que precisa o tempo inteiro estar garantindo os recursos pra sua sobrevivência e vê o outro como inimigo – precisa tirar o recurso do outro. Algo como “farinha pouca, o pirão é só meu”. Outra coisa bem diferente são povos provenientes de contextos de abundância, de clima ameno e rios caudalosos que facilitam a agricultura. Abundante em terras férteis e recursos naturais, esse povo tem uma postura diferenciada em relação à natureza, a vida e os outros povos. Somos o povo do compartilhamento e da fartura – não dá pra ver?
No seu livro “Para quando a África?” Ki-Zerbo fala sobre como o “mercado” em África é mínimo. A terra, a água (…) são bens coletivos que não podem ser vendidos. A ausência de propriedade privada da terra deixa muito nítido que você não pode falar de “luta de classes” em África. Pra início de conversa, a terra é dos ancestrais.
Cultura ocidental e racismo são indissociáveis. A cultura branca é racista em essência, porque é xenofóbica em sua origem – a partir do advento de povos em contextos de escassez. É a cultura da violência. A cultura que ostentou, em sacos, pares e mais pares de orelhas de povos pretos, como medalhas da barbárie. Não existe fenômeno semelhante na humanidade. (Guerras sempre existiram, sim. Mas eu tô falando do sadismo de arrebentar os crânios de crianças pretas por elas serem pretas. Quando penso nisso, lembro que quando estourou a Revolução Haitiana, Toussaint Louverture despachou mulheres e crianças brancas pra frança a fim de protegê-las. Vê a diferença?)
Em última instância, o que o socialismo/comunismo ou seja lá que diabos propõem, é que povos EUROPEUS (com sua historicidade individualista, caçadora, forjada num ambiente de escassez e violência) adotem os valores AFRICANOS E INDÍGENAS em relação à propriedade privada, valores de coletividade, etc… Propõe que o ocidente deixe de ser o que é e passe a ser o que os outros que eles destruíram sempre foram. É aí que reside a sua utopia.
Nós, povo negro, não precisamos fazer uma revolução, mas uma RESTAURAÇÃO dos nossos valores a partir de uma análise centrada na nossa história e cultura. Os valores socialistas em si, não são ruins. A análise socialista quando aplicada à nossa história é super equivocada, mas o que o socialismo propõe, em última instância, não é ruim. Só não é europeu. Rssss… A europa não inventou nada. No final das contas, o que a europa socialista diz querer ser é o que ela jamais foi ou será: África.
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(1) Para mais informações ver livro “They came before Columbus”, de Ivan Van Sertima
(2) Para mais informações sobre a violência da cultura branca/ocidental, além de Diop, claro, ver o livro “Porque o ocidente venceu”. Victor Davis Hanson.
(3) Na foto: escultura da negra Civilização Olmeca