Notas sobre a luta pela emancipação da mulher

Por Kelly Vieira Meira.

Ao ler o artigo intitulado “Nas sombras do obscurantismo”[1] de Maria Orlanda Pinassi, publicado no caderno Margem Esquerda, edição 20, Boitempo, ano 2013, me dei conta do quanto são incipientes as conquistas do universo feminino, embora eu mesma faça referência a elas com certo orgulho. O fato é que os avanços que muitas vezes citamos não refletem a realidade vivenciada cotidianamente, aquela sentida na carne pela violência perpetrada no lar e socialmente; aquela sentida na alma quando a exaustão nos domina ao nos vermos aprisionadas em um sistema de trabalho contaminado pelo falo capitalista.

Outra oportunidade que o artigo me propiciou foi rever minhas conclusões no que diz respeito à comparação dos dados de violência contra a mulher[2] com os dados de morte relacionados a travestis e transexuais[3]. A alarmante constatação está no fato de que no Brasil as questões de gênero ainda são devastadoras em todos os aspectos e contextos. Iniciando pela pretensa causa nobre da segregação necessária (direitos desse, com aquele, para aquela…) por especificidades da qual eu acreditava estar tomada por certo da ação, me fazendo aparelho discursivo sem a introjeção da realidade dos fatos, da essência uno que nos relega ao menos: feminino. Ainda me cegam essas construções narrativas, político transitório das massas, que ao modo Pollyana de ser, eu proferia sem minimamente um apurado senso de investigação, mas que no centro da possibilidade desta necessidade eu fazia jus ao respeito pela divisão, negando uma pretensa emergente coalisão. Sem perceber minha linguagem fui vitima de mim mesmo, fui assolada pela discursiva necessidade de que tenha que existir cada vez mais a famosa fragmentação por especificidades.

Estamos morrendo! O feminino encontra muita dificuldade para resistir às bestialidades diárias que nos assolam, advindas de um sistema que na sua essência é desigual. Disputa de feminismos pautada no etnocentrismo: vide os comentários[4] do delicado filme britânico As Sufragistas, dirigido por Sarah Gravon, 2015, que pretendeu mostrar a luta do movimento de mulheres britânicas pelo direito ao sufrágio, que vem sofrendo uma truculenta reação de mulheres e movimentos que ganharam força para o enfrentamento de uma sociedade patriarcal a partir desse contíguo ínfimo de direitos conquistados desde o inicio do século XX – respeitando aqui toda e qualquer propriedade reivindicatória do movimento negro e, principalmente, reconhecendo a especificidade do segmento que é alvo potencial de todas as iniquidades denunciando ainda o paradoxo existente – desconsiderando a época deflagrada no filme onde o feminismo se fazia, não exclusivamente, mas majoritariamente por intermédio do que vem sendo chamado de feminismo branco. Entretanto, esta obra que contempla um potencial vetor educativo, vem sofrendo enormes resistências do mercado, uma vez que “não tem apelo comercial”, e, portanto, o que não vende não é necessário replicar.

Há pouco recebi uma carta aberta lançada pelo IEG/UFSC[5], de cunho emergencial e chamando para o necessário enfrentamento da misoginia, do sexismo instalado na superestrutura e potencializado no quiasma da Translesbofobia. Escrito por uma das sumidades nas questões de gênero vinculadas ao Instituto, Profª Luzinete Simões Minella, o texto reinscreve os dados notificados das violências no Brasil e trazem para a cena dois casos locais, cuja frequência vem aumentando acintosamente.

Há pouco tivemos o dia da Visibilidade Trans. Mas, esse dia assim, como hoje, são dias de enfrentamento ao capitalismo! A dúvida que me acompanha diz respeito ao alcance da finalidade inspirada por esses dias comemorativos. Estamos mesmo lutando contra a opressão machista de um sistema enviesado pelo patriarcado?! Sim, penso que todos os dias, a cada momento. Mas para avançarmos a coalisão se impõe a nossa luta: hoje é o dia da visibilidade trans, da mulher; da negritude, da mulher; da camponesa, da mulher; da indígena, da mulher; da cigana, da mulher; da ribeirinha, da mulher feminina, da mulher masculina…. das mulheres de luta, das mulheres que aprisionadas neste mundo capitalista, misógino e sexista, precisam encontrar-se e cruzar seus ideais, suas causas, sua luta. Mulheres que morrem, apanham, sangram, simplesmente por serem condições de mulher. Um encontro de mulheres que deve tomar as rédeas de um dos engodos capitalistas que fragmenta para visibilizar o que não existe. Sim, muito se avançou! Não para vivenciarmos a equivalência dos direitos, mas para encherem os carrinhos de necessidades efêmeras criadas para se tornarem padrões de consumo voltados para um segmento específico! Hoje é dia da visibilidade de produtos comerciais, as lojas estarão todas abarrotadas. Dia da medicina mercantil que constrói corpos, fomenta gêneros. Dia de um mercado que não disponibiliza nas prateleiras um direito a ser usufruído com respeito e sem medo.

Destaco do artigo uma citação que transcrevo pelo sentido educativo que transmite: “A evolução de uma época histórica é determinada pela relação entre progresso da mulher e da liberdade, porque relações entre homem e a mulher, entre o fraco e o forte, fazem ressaltar nitidamente o triunfo da natureza humana sobre a bestialidade. O grau de emancipação feminina determina naturalmente a emancipação geral […]” Marx, A sagrada família[6].
Mulheres – todas as castas, nichos, clivagens, fragmentos, especificidades, vulnerabilidades, grupos de risco… – todas: será que sabemos/reconhecemos/sentimos nossa FORÇA?! Bora lá abraçar o que não quer ocupar um lugar fixo, físico; Não quer ser mimese puramente, mas quer somar, simplesmente, ir à luta, irmos juntas contra esse sistema que só favorece os machos.

E que se calem os desprovidos de sanidade, os reacionários que dizem ser Isso apenas oportunismo, que, quando o cú aperta (aqui para sair das diferenças do sexo e gênero, pois cumpre a mesma função a ambos) ou o poder se apresenta, serão as primeiras a bater com o pau na mesa. Refuto dizendo que é justamente esse o problema: a boca sem o conhecer do poder. Numa sociedade onde quem tem, não importa o bem, agride como ninguém! Todas as pessoas estão sujeitas a bater seus paus, não importa o gênero.

Referências

1] Margem esquerda, ensaios marxistas, Edição 20, março de 2013 – sessão artigos – Nas sombras do Obscurantismo, por Maria Orlanda Pinassi, pag. 91.

[2] Mapa da Violência, 2015, Homicídios de Mulheres no Brasil, Julio Jacobo Waiselfisz, FLASCO Brasil, DF, 2015. Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf.

[3] Por Marieta Cazarré, disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/com-600-mortes-em-seis-anos-brasil-e-o-que-mais-mata-travestis-e

[4] Por Nina Finco, disponível em http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/12/o-movimento-sufragista-ou-parte-dele.html

[5] Professora do Departamento de PPG de Ciências Humanas e PPG de Sociologia Política/UFSC, Carta de repúdio às violências lsbo-trans-homofóbicas contra estudantes da UFSC, divulgado em https://www.facebook.com/photo.php?fbid=566322960181457&set=pcb.566324040181349&type=3&theater

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