O subsistema de atenção à saúde indígena foi criado no ano de 1999 pela Lei 9.836, conhecida como a Lei Arouca. Desde então, o governo federal ficou obrigado a estruturar um modelo de atenção à saúde diferenciado, vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), tendo por base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), onde deveriam se desenvolver os planos de atuação e a execução de todas as ações, sempre com a participação dos povos e comunidades.
Os serviços em saúde podem ser realizados, de forma complementar, com os estados e municípios, mas os entes públicos precisam, necessariamente, respeitar as culturas indígenas, o modo de ser de cada povo, suas práticas tradicionais e medicinais e suas compreensões acerca da saúde e doença. Este subsistema deve abranger uma assistência em saúde global – de baixa, média e alta complexidade – segurança nutricional, habitacional, educação sanitária, saneamento básico, proteção ao meio ambiente, demarcação de terras, integração institucional.
Atualmente a responsabilidade pela gestão em saúde é da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), criada pela Lei 12.314/2010. Para prestar assistência no âmbito dos distritos, a Sesai adotou o modelo de terceirização, a partir do qual se estabelecem convênios financeiros com organizações da sociedade civil que, depois de equipadas, realizam a prestação de serviços junto aos indígenas.
Esta, de forma resumida, é a estrutura e o funcionamento do atual modelo de assistência com o qual deveriam ser enfrentados os problemas de saúde dos povos indígenas. Problemas, estes, que atualmente foram agravados pela pandemia da covid-19, o novo coronavírus.
É importante ressaltar que os povos buscaram, ao longo das últimas décadas, atuar de forma efetiva na política de saúde. E, apesar dos desvios políticos, dos subterfúgios no gerenciamento de recursos financeiros, no sentido de restringir o pleno funcionamento do subsistema – que deveria ter autonomia administrativa e de gestão distrital – os povos conseguiram manter certo controle social e exigir participação em todas as etapas da política.
Apesar das iniciativas indígenas para qualificar suas participações no planejamento e elaboração dos planos distritais, a atenção em saúde sempre foi frágil, especialmente quanto aos serviços de prevenção e de saneamento básico. Os governos, desde a promulgação da Lei Arouca, foram negligentes quanto à adoção de medidas sanitárias e de atividades permanentes nas terras indígenas. As ações, em geral, acabaram sendo paliativas e/ou emergenciais.
A pandemia na política de saúde tem sido devastadora. Se impôs, nas relações, o fundamentalismo religioso e o extremismo político. Abandonaram-se as práticas do respeito aos indígenas e da presença das equipes de saúde em área, transformando-as em equipes volantes e emergenciais
Mas, se o histórico da política de saúde indígena demonstra ter havido desvios, a partir da eleição do governo de Jair Bolsonaro o caos se instalou tal qual um vírus devastador. Os povos indígenas passaram a enfrentar duas pandemias: a política e a da covid-19. A primeira medida de Bolsonaro, mesmo antes de tomar posse, foi no sentido de romper com o programa Mais Médicos, o único que assegurava presença de profissionais em saúde de forma mais consistente nas áreas indígenas.
A sua segunda medida ocorreu logo nas primeiras semanas de governo, quando colocou sob suspeição a administração dos recursos financeiros em saúde. Essas suspeitas justificaram a suspensão de verbas para prestação de serviços durante vários meses, deixando as comunidades sem nenhum tipo de assistência.
A terceira medida adotada foi a disseminação de informações de que a política seria municipalizada ou privatizada. Enquanto isso, inviabilizou-se o controle social e a participação indígena nas discussões de políticas públicas e rompeu-se com o diálogo, impossibilitando – inclusive – a realização da VI Conferência Nacional de Saúde Indígena, iniciada no ano de 2018, através das etapas locais e distritais.
A pandemia na política de saúde tem sido devastadora. Se impôs, nas relações, o fundamentalismo religioso e o extremismo político, desrespeitando as culturas indígenas e seus saberes. E, mais grave, abandonaram-se as práticas do respeito aos indígenas e da presença das equipes de saúde em área, transformando-as em equipes volantes e emergenciais.
O coronavírus chega ao Brasil e logo contamina as aldeias. Lá o vírus encontrou um ambiente propício para se alastrar e fazer vítimas. O governo, assim como fez com os pobres em todo o país, lançou os indígenas à própria sorte. Sem planejamento e com poucos profissionais preparados para enfrentar a pandemia, a contaminação chegou nas aldeias, vitimando os sábios, os anciãos, deixando sequelas que serão sentidas por muitos anos.
Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), 717 indígenas já perderam suas vidas, 27.034 foram contaminados e 155 povos impactados. Sem um plano de intervenção, as equipes de saúde, a maioria com valorosos profissionais, dedica-se a fazer o que é possível: orientar as comunidades para o necessário isolamento social e acompanhar, de forma itinerante, as aldeias para tentar identificar os casos de contágio e os doentes.
O Cimi, a partir dos dados que obteve das comunidades indígenas, denuncia a evidente omissão do governo, através do Ministério da Saúde e da Sesai, diante da pandemia. Há evidências quanto à precariedade na prestação de assistência continuada nas comunidades, negando-se inclusive a realização de testes para saber sobre a quantidade de infectados, omitindo ou sonegando os dados sobre os mortos, doentes, infectados e o número de comunidades atingidas.
Denuncia também a fragilização das equipes de saúde, submetendo os profissionais a uma atuação paliativa, já que suas condições de trabalho são precárias, pela falta de infraestrutura, de equipamentos e profissionais. Denuncia a absoluta ausência de saneamento básico nas aldeias e a falta, em geral, de água potável, o que configura uma violência extrema, porque não pode haver prevenção em saúde sem água. Também denuncia a frágil condição nutricional das comunidades, não havendo comida suficiente e adequada. Denuncia a falta de acesso dos povos e comunidades ao sistema de saúde e, nesse sentido, todos ficam em situação de absoluta vulnerabilidade.
Denuncia, ainda, que os indígenas estão alijados de qualquer tipo de participação e planejamento das ações em saúde e do controle social. Não à toa, a unanimidade dos ministros da Suprema Corte do país condenou o governo Jair Bolsonaro a tomar medidas mínimas de proteção em favor das comunidades indígenas e quilombolas. Não à toa, foram derrubados vetos ao projeto de lei que visa proteger essas comunidades, como o artigo que previa a disponibilidade de água potável.
Os povos, portanto, convivem com duas pandemias ao mesmo tempo: a da política nefasta de Bolsonaro e a da covid-19. As comunidades superarão o coronavírus, porém ficarão as sequelas, a dor da perda daqueles que morreram. A pandemia da política, entretanto, é ainda mais devastadora.
O governo ataca os povos por todos os flancos: pelo direito, tentando desconstituí-lo; pelas políticas públicas, visando à integração genocida; e pela exploração e devastação das terras, por meio da desterritorialização dos povos.
As sequelas e a destruição, provocadas pelo atual governo, são quase irreversíveis. Há necessidade de uma intensa mobilização nacional – inclusive no âmbito dos poderes da República – e internacional, para que a atual política genocida, empreendida pelo governo, seja estancada. Caso contrário, assistiremos ao desaparecimento de terras e de povos, especialmente dos povos isolados ou livres.
Brasília, DF, 24 de agosto de 2020/Conselho Indigenista Missionário – Cimi.