Nota do Cimi: com fracasso evidente da conciliação, é urgente que STF decida sobre Lei 14.701 e reafirme direitos indígenas

Não há negociação nem composição possível quando se fala de direitos fundamentais e indisponíveis, como são os direitos constitucionais dos povos indígenas

Representantes indígenas se retiraram da mesa de conciliação sobre a Lei 14.701/2023 com manifestação e gritos de “marco temporal não!”. Foto: Tiago Miotto/Cimi

A segunda reunião da mesa de conciliação convocada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes com o objetivo de “compor” um acordo sobre direitos fundamentais dos povos indígenas inseridos no artigo 231 da Constituição Federal – e nela reconhecidos como direitos indisponíveis e imprescritíveis – confirmou o insucesso e a inviabilidade desse mecanismo de negociação.

Da mesma forma que na primeira reunião, ocorrida no dia 5 de agosto, a audiência realizada nesta quarta-feira (28) voltou a ser conduzida de forma confusa e arbitrária por pessoas que mostraram, em diversos momentos, evidente parcialidade, muito pouco conhecimento da matéria e nenhuma sensibilidade com a realidade que vivem os povos indígenas.

A discussão atravessou em diversos momentos níveis muito baixos e precários de qualificação e de competência. Todas as preocupações despertadas durante a primeira reunião foram confirmadas ontem de forma clara: trata-se de uma mesa sem objeto definido, com uma composição desfavorável aos povos indígenas e que pretende avançar na modulação e reformulação de direitos fundamentais por sistema de maioria simples.

O caráter perverso alcançou seu nível mais cruel quando o coordenador da mesa, em sua fala introdutória, afirmou que os povos indígenas carregariam com o ônus da violência nos territórios caso decidissem retirar-se da mesa de conciliação. Esta afirmação foi feita poucas horas depois de um novo ataque armado contra o povo Avá-Guarani no Tekoha Y’Hovy, localizado na Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, no oeste do Paraná, que deixou quatro indígenas feridos e um ambiente de terror que permanece ainda hoje.

A retirada do movimento indígena da mesa – nela representado pela Articulação dos Povos Indígenas (Apib), autora da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7582 – após a leitura pública de uma declaração é uma decisão política legítima e altiva por parte dos povos originários. Evitando cair na cilada política e jurídica de uma conciliação forçada, os povos indígenas demonstram um compromisso firme com a garantia de seus direitos, duramente conquistados e reconhecidos na Constituição Federal de 1988, e transmitem ao STF a plena confiança de que a Corte assumirá seu dever e obrigação de guardar a Constituição Federal e garantir os direitos das minorias.

Por outro lado, a eventual continuidade da mesa de conciliação sem a presença dos povos indígenas fere, por si mesma, direitos fundamentais e compromissos internacionais que fazem parte do marco normativo mais elevado do país, o que já deveria ser motivo suficiente para que representantes dos Poderes Legislativo e Executivo e dos órgãos de controle também se retirassem da mesa e para que o Poder Judiciário revisse, definitivamente, a iniciativa.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reafirma que o mecanismo da mesa de conciliação ou autocomposição, em seu mérito e essência, não é um instrumento válido, nem legítimo, nem competente para dirimir sobre matéria indígena. Não há negociação, nem modulação e nem composição possível quando se fala de direitos fundamentais e indisponíveis. Em apenas duas reuniões já ficou evidenciado o insucesso da iniciativa e agora urge retomar os caminhos da institucionalidade democrática para resolver a situação.

É absolutamente urgente e imprescindível que o STF suspenda os efeitos da Lei 14.701/2023, ou que de pronto já declare sua flagrante inconstitucionalidade. A vigência desta lei é imoral e afronta a vida e o futuro dos povos indígenas. Os procedimentos administrativos de demarcação estão paralisados e todo o país está testemunhando uma escalada da violência armada contra os povos indígenas em seus territórios.

Fazendeiros, ruralistas e milicianos continuam assediando, intimidando e atacando comunidades indígenas, cercando-os e ateando fogo, impedindo a chegada de ajuda humanitária e atirando contra mulheres e crianças em ataques covardes, acobertados pela ineficiente ação do Estado, o que lhes garante absoluta impunidade. Não é possível desvincular a persistente violência contra os povos indígenas da vigência da Lei 14.701/2023 e da manutenção da falaciosa mesa de conciliação.

O STF tem nas suas mãos a possibilidade, ante a sua obrigação institucional, de declarar a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 e abrir um novo cenário que firme a atuação do Estado brasileiro para a garantia dos direitos dos povos indígenas. O ministro Gilmar Mendes tem a responsabilidade de apreciar os pedidos levados pelos indígenas nas ações de controle de constitucionalidade, das quais ele é o ministro relator.

Não pode abdicar dessa responsabilidade e não pode distanciar-se do já decidido pela Corte Suprema em setembro de 2023 no âmbito do Tema 1.031. Na ocasião, o próprio ministro Gilmar Mendes emitiu voto favorável aos direitos originários dos povos indígenas contemplados no artigo 231 da Constituição Federal de 1988 posicionando-se, consequentemente, pela inconstitucionalidade do marco temporal.

Tramitam ainda no STF dois pedidos de incidente de inconstitucionalidade, de relatoria do ministro Edson Fachin, e aguardam decisão os embargos de declaração do julgamento do Tema 1.031, que já estão aptos e disponíveis para serem pautados no plenário pelo presidente do Supremo. Todas estas ações possibilitam, processualmente, uma decisão imediata e urgente do STF pela inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, o que resultaria na retomada dos procedimentos de demarcação de terras indígenas, obrigação constitucional da União.

Ainda, no entendimento do Cimi, há possibilidades concretas, administrativas e jurídicas, para que o governo federal avance de forma sistemática nos procedimentos administrativos de demarcação, inclusive durante a vigência da Lei 14.701/2023 e enquanto se aguarda pela declaração de sua definitiva inconstitucionalidade. Numerosos processos de demarcação em curso não são afetados pelo marco temporal e não cabe, de forma alguma e mesmo sob a vigência da lei, qualquer eventual retrocesso nas etapas já concluídas dos procedimentos administrativos de demarcação, uma vez que se trata de atos jurídicos perfeitos sobre um direito constitucionalmente declarado.

O momento atual requer determinação política e compromisso constitucional para avançar na garantia dos direitos dos povos indígenas e pôr fim à escalada de violência nos territórios. Os caminhos existem, estão abertos e são possíveis. A demora e inação colocaria o Estado brasileiro em situação de conivência com a violência contra os povos indígenas e em escancarado descumprimento de suas obrigações constitucionais e internacionais.

O Conselho Indigenista Missionário conclama a todas as instâncias do Estado e a toda a sociedade brasileira para somar esforços, assumir as responsabilidades e avançar, com determinação e urgência, sem curvar-se a interesses particulares, na defesa da vida, dos direitos e do futuro dos povos indígenas, que é o futuro de nosso país.

Brasília (DF), 29 de agosto de 2024

Conselho Indigenista Missionário – Cimi 

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