Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes (Diretório dos Índios, 1755).
O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) vem a público manifestar veemente repúdio ao Veto Presidencial ao Projeto de Lei nº 5.954-C emitido na Mensagem 600, em 29 de dezembro de 2015 pela Presidência da República. O referido projeto, de autoria do Senador Cristovam Buarque, visa assegurar às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas, bem como de processos próprios de aprendizagem e de avaliação que respeitem suas particularidades culturais, na educação básica, na educação profissional e na educação superior.
Trata-se, na verdade, do reconhecimento da abrangência de direitos já assegurados constitucionalmente, uma vez que o Art. 210, § 2º da Constituição Federal de 1988 estabelece que “o ensino fundamental será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. O Art. 231, por sua vez, afirma que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Constata-se, pois, que as línguas indígenas constituem bens que, tanto como os outros, devem ser protegidos pela União, acrescido da incumbência de fazer com que se respeitem esses bens! Dessa forma, o Veto constitui uma violação aos direitos linguísticos já garantidos na Constituição e na Lei 9.394 de 1966, a Lei de Diretrizess e Bases da Educação Nacional (LDBEN).
A presença das línguas indígenas em outros níveis de ensino além do fundamental não é só desejável, como também necessária para que elas sejam plenamente respeitadas e os preceitos constitucionais sejam efetivamente cumpridos. Ao longo do processo colonizatório, ao massacre de povos indígenas seguiu-se a morte de milhares de línguas. Mesmo assim, nosso país apresenta uma grande diversidade sociocultural e linguística da qual deve se orgulhar, pois isto é uma riqueza em termos de humanidade e não algo “que contrarie o interesse público” como alega o Veto.
É de se questionar quais interesses e qual público são contrariados com a presença das línguas indígenas nas instituições de ensino, pois todos teriam a ganhar com isso, uma vez que cada língua indígena encerra uma forma única de se conceber e pensar o mundo. Do mesmo modo, questionamos a impossibilidade de se incorporar as particularidades de cada sociedade indígena nos processos de avaliação educacional, a não ser que o objetivo seja a implantação de uma educação homogeneizadora que visa apagar a diversidade constituída pelas formas próprias de educação de cada povo indígena.
Os complexos processos educativos dos povos indígenas gestaram sociedades nas quais o respeito à singularidade de cada pessoa é concretizado como um valor organizativo. Basta vermos os variados rituais de iniciação que socializam as crianças e jovens, integrando-os à vida comunitária. Muito teríamos a aprender com eles caso retirássemos as vendas do preconceito e da discriminação, pois os princípios das pedagogias indígenas impedem a segregação de crianças e jovens, como o fazem as avaliações massivas que consideram todos os estudantes do país como iguais e com acesso às mesmas oportunidades educacionais.
Um país que se quer “um país de todos” e “uma pátria educadora” não pode desconsiderar o extenso patrimônio histórico, linguístico e cultural representado pelos povos indígenas que é constitutivo de nossa nação. É inegável o acúmulo de conhecimentos acadêmicos resultantes do diálogo entre as universidades e indígenas que ingressaram nos últimos anos na academia, falantes de inúmeras línguas originárias de seus povos e portadores de saberes que só estão codificados em suas línguas. Assim, as línguas indígenas já estão presentes em várias instituições de ensino superior bem como em cursos de Ensino Médio realizados em terras indígenas.
O Veto apresenta, ainda, um caráter contraditório pois o próprio Ministério da Educação tem desenvolvido ações que visam o fortalecimento do uso das línguas indígenas nas Escolas Indígenas, como a Ação Saberes Indígenas na Escola.
Ressaltamos ainda que o Projeto 5.954-C tramitou em três Comissões do Congresso: Direitos Humanos e Minorias, Educação e Constituição e Justiça e Cidadania e os votos dos relatores foram favoráveis à sua aprovação. Ao mesmo tempo, em nenhum momento o processo que resultou no veto presidencial foi submetido à Coordenação-Geral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação. A equipe técnica da Coordenação não tomou conhecimento do processo. Não se manifestou nos autos.
Diante do exposto, o Conselho Indigenista Missionário urge que a Presidência da República anule este Veto que remete às piores práticas colonialistas, como a do nefasto Diretório pombalino de 1755 que proibiu o uso das línguas indígenas em nosso país.
Brasília, DF, 12 de janeiro de 2016
Cimi- Conselho Indigenista Missionário (Cimi ).
Foto: Reprodução CIMI.