No último dia 28 de maio de 2021, o juiz federal Marcelo De Nardi, julgou contra o povo Guarani Mbya da Terra Indígena Cantagalo. Esta ação foi promovida pela FUNAI, que buscava a imissão na posse, ou seja, a retomada do território da comunidade em área já demarcada, uma vez que havia discordância em relação ao valor da terra e a validade dos próprios títulos das pessoas candidatas a proprietárias.
A ação promovida pela Funai visava a retomada de toda a extensão da ocupação tradicional da comunidade e acabou tomando a proporção inversa: se voltou contra a própria comunidade Guarani Mbya, que nunca foi ouvida nos autos judiciais.
Este caso demonstra como nem mesmo as terras indígenas já demarcadas estão protegidas de ataques. Apesar da terra já estar demarcada, a sentença judicial entendeu que a tese do marco temporal é aplicável ao caso da T.I Cantagalo, no sentido de que os documentos apresentados pela FUNAI nos autos, ou seja, os dados arqueológicos e o esbulho da terra, que fora documentado, seriam insuficientes para caracterizar a tradicionalidade da área.
De forma, extremamente confusa e com contradições, a justiça federal negou o direito da comunidade Guarani Mbya à terra, usando o marco temporal como justificativa para negar este direito.
Assim, a sentença parece negar o histórico de violência, perseguição e perturbações contra os povos indígenas, como se independente desses fatores históricos, a comunidade deveria ter permanecido ininterruptamente em seu território, mesmo diante de todos esses ataques.
Ao fim da decisão, com a negativa da tradicionalidade da terra, o magistrado negou então a propriedade da União e até mesmo a competência da FUNAI para a ação. Esta decisão nos soa como um “drible” da medida da Repercussão Geral, declarada pelo STF no caso Xokleng, que por sua vez determinou a suspensão de todos os processos que tenham em vista a aplicação do marco temporal, “sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas”.
Veja um trecho da decisão da justiça federal de Porto Alegre contra o povo Guarani Mbya: “Os dados arqueológicos mencionados na informação produzida pela ré FUNAI por si já indicam a insuficiência para alcançar tal conclusão. Eventuais marcas de ocupação anterior não são suficientes à demonstração de ocupação tradicional pelos indígenas. As terras que os indígenas tradicionalmente ocupam não são as que venham a ocupar ou as já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade. O termo originário empregado na constituição se refere a uma situação mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Não é a situação retratada neste processo.”
A histórica colonização e apropriação de terras indígenas no sul do país é notória, ainda que haja pretensos proprietários de boa-fé que devam ser indenizados pelo estado brasileiro.
Ademais, veja-se trecho também do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, do voto do Ministro Ayres Britto:
Mas a habitação permanente não é o único parâmetro a ser utilizado na identificação das terras indígenas. Em verdade, é o parâmetro para identificar a base ou núcleo da ocupação das terras indígenas, a partir do qual as demais expressões dessa ocupação devem se manifestar. [fls. 378/381].
É importante ressaltar ainda que, no ano de 2011, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública perante a 9ª Vara Federal de Porto Alegre com o objetivo de reconhecer os direitos da comunidade da T.I Cantagalo e esta foi injustamente não provida (autos nº: processo nº: 5042890-71.2011.4.04.7100 – JFRS).
No caso presente o documentado esbulho renitente, ocorrido entre as décadas de 1970 e 1980, deve ser considerado para superar a eventual malfadada tese do marco temporal, mas também não o foi. Em verdade, foi usado para sustentar que a posse dos indígenas não era ininterrupta. Se nem mesmo os dados arqueológicos e tudo o demais documentado no que se refere às comunidades que realizavam retomada da ocupação do território tradicional não são capazes de comprovar o direito territorial indígena, o que poderá ser?
A mobilização indígena no decorrer do mês de julho, contra o Marco Temporal, em razão da aprovação do PL 490 pela CCJ da Câmara dos Deputados e do mais uma vez adiado julgamento do RE 1.017.365 pelo STF, dão conta que a decisão do juiz da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, no caso da T.I Cantagalo, acaba indo na contramão e afirma retrocessos aos direitos dos povos indígenas do Brasil.
Chapecó, SC, 29 de julho de 2021.