Entrevista por Inês Castilho com Fernando Meirelles.
Em meio a críticas e esperanças, pensadores e ativistas debatem como superar crise da representação e reinventar democracia–
Avançou de modo notável, nos últimos anos, a sensação de que o peso do poder econômico está desfigurando a democracia, a ponto de levá-la ao colapso. Um número crescente de pensadores, ativistas, cidadãos comuns dá-se conta de fenômenos como a mercantilização das eleições e a institucionalização do tráfico de influência. Envolvidos em disputas eleitorais cada vez mais caras, partidos e governantes comprometem-se profundamente com os interesses de grupos empresariais que nutrem suas campanhas políticas.
O dinheiro oferecido pelos financiadores é visto como um investimento e cobrado ao longo de cada dia de mandato. Com tal intensidade que muitos já não creem que seja possível adotar políticas contrárias aos interesses do poder econômico associado à política; e que mesmo decisões simples e de bom senso elementar – como a reconstrução de uma malha ferroviária no Brasil, ou a instalação de redes de ciclovias eficazes nas cidades – não saem do papel. Mas, se o diagnóstico é conhecido, as alternativas rareiam. Como excluir da política o Poder Corruptor?
O cineasta Fernando Meirelles formulou uma hipótese provocadora, em entrevista que concedeu à jornalista Inês Castilho, condutora da série de diálogos sobre Política Cidadã, produzida pelo Instituto de Pesquisas Ideafix, por solicitação do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Suas respostas sugerem que uma nova política e um novo sistema econômico virão juntos. Ou seja, o que vivemos é o desgaste geral de nossas formas de socialização – um conjunto de relações que envolve produção de bens e serviços, formas de decisão coletiva, hierarquias concretas e simbólicas. Para superá-las será necessário levar muito adiante certas transformações culturais que já estão se dando.
Meirelles destaca a tensão entre política institucional (restrita aos “gabinetes e restaurantes”) e o intenso desejo de participação da sociedade (“sou muito mais convocado, como cidadão, que cinco anos atrás”). Ele lembra que não se trata apenas de discurso: atitudes transformadoras estão se multiplicando em todo o mundo. No entanto, esbarram em obstáculos estruturais: “a lógica do dinheiro é produzir sempre mais” e a dos políticos “esgota-se em mandatos de quatro anos”. Nenhum poder importa-se com as “perspectivas de longo prazo”, necessárias para preservar a vida.
Caberá à própria sociedade, conclui Meirelles, estabelecer uma ruptura. Não se trata da velha fórmula de tomada do poder de Estado – mas da “dificílima e demorada transformação das nossas vidas”. Só a empreenderemos, no entanto, se soubermos que se trata de construir um novo sistema: “a lógica do capitalismo (…) poderia fazer algum sentido (…) num mundo que não é mais o nosso”. A superação desta lógica implicará, entre outros passos, “valorizar bens não-materiais: educação, esporte, cultura, ciência – atividades humanas que não consomem o planeta e preenchem mais a alma que a busca desesperada pela reposição de bens”.
Qual sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
A política no Brasil ainda é feita muito nos gabinetes e restaurantes, tem um quê de futebol, o interesse pelo jogo de poder entre os partidos vem antes do debate das ideias. Isso é muito frustrante para quem tenta acompanhar nossos homens públicos. A boa notícia é que, com o crescimento das redes sociais, a participação popular também tende a crescer e o processo político, a ficar mais transparente. A mobilização popular pela Ficha Limpa e contra o Código Florestal demonstraram que a população começa a ter mais peso nas decisões do país.
Que temas você acha que mobilizam a sociedade brasileira, hoje?
A falta de transparência dos partidos e do governo vem mobilizando a sociedade, já não é tão fácil ser corrupto, hoje. A preocupação com questões ambientais também mostra ser um forte tema para a moblização social. Isso já havia sido sentido com a expressiva votação que teve a Marina Silva na última eleição à presidência e foi reforçado agora, no processo de votação e veto parcial do Código Florestal, que contou com abaixo-assinado de 2 milhões de pessoas. Isso entre outras manifestações, incluindo a criação de sites especializados, transmissão ao vivo do congresso etc.
Que formas o cidadão comum tem de atuar politicamente?
Passei anos sem receber nenhum abaixo-assinado, agora semanalmente sou chamado a me posicionar sobre os mais diferentes temas, internos e externos. Sinto-me hoje muito mais convocado, como cidadão, do que cinco anos atrás, e estimula saber que muitos desses movimentos populares estão dando resultado. Está aí a primevera no norte da África que não nos deixa mentir.
Você vê alguma particularidade quanto ao jovem?
Os jovens talvez tenham menos interesse em política do que quem lê jornal e tem o hábito de se manter informado, mas estão cada vez mais plugados, graças às redes sociais. A era dos Sarneys, dos coronéis que trabalham em segredo, está acabando.
Você acha que a política institucional dá conta da democracia?
Sinto que os partidos não representam a vontade da população, não trabalham para o Estado nem para o bem do país – trabalham prioritariamente para se manter no poder. Não saberia inventar outro sistema, mas percebo que este não dá conta da complexidade do mundo de hoje. O ex-presidente Lula declarou recentemente em um programa de TV que aceitaria se candidatar novamente à presidência, para que o PSDB não ocupasse o lugar. Essa declaração infeliz resume a questão: o poder político é um jogo que se vence ou se perde, e é isso que mobiliza seus participantes – o país vem depois, quando vem. Outro aspecto que tem me chamado a atenção é que, por estarmos todos muito mais ligados, praticamente não há mais poder local. Um prefeito que não trabalhe com os outros prefeitos da região não consegue fazer seu trabalho direito. Países que não integrem órgãos internacionais nos quais se debatam os interesses comuns ficam de mãos atadas.
Os anos 60 marcaram época, politicamente. O que mudou de lá pra cá?
Nos anos 60 o mundo estava dividido entre esquerda e direita, estava-se do lado de cá ou do lado de lá. Quando você polariza, o jogo fica mais acessível e mais apaixonante, vira um Fla-Flu. Depois tivemos o período em que a nossa sociedade foi convidada a se calar, e então o mundo ficou muito mais complexo. Hoje a esquerda é apoiada, por exemplo, pelo José Sarney e pelo Aldo Rebelo – este, um comunista que vota com os ruralistas. Tudo é mais confuso, mais impenetrável. O pensamento e as fórmulas de governança dos anos 60 não cabem mais no mundo de hoje.
Você percebe uma mudança de valores, dos anos 60 pra cá?
Um grande valor hoje, praticamente inexistente 40 anos atrás, é em relação às questões ambientais. Há 40 anos o planeta era inesgotável, ainda estava sendo conquistado. Hoje temos a percepção de que vivemos num planeta onde os recursos são finitos e, pior, estão se esgotando rapidamente. A grande descoberta em termos de valor é entendermos a necessidade de pararmos de pensar como nações e passarmos a pensar como planeta. A ideia de soberania nacional vai aos poucos sendo revista, ou relativizada. A interdependência global é um dado inquestionável. Se queimarmos a Amazônia, não choverá no Sul e vai haver seca no centro do Brasil, o carbono liberado vai acelerar o aquecimento do planeta, geleiras irão derreter, rios que dependem delas deixarão de ser formados, populações ficarão sem suas fontes de alimentos. Tudo está ligado. Não tínhamos essa noção 40 anos atrás. Hoje sabemos que o degelo da Groenlândia vai afetar imensamente a vida de enorme população na Ásia que vive à beira-mar. Essas questões bateram à nossa porta e já estão nos atropelando. Apenas cegos, cínicos ou oportunistas se recusam a enxergar.
Um parêntese: a despeito disso tudo, existem 69 povos isolados indígenas no Brasil.
Sim, pequenas aldeias devidamente localizadas e demarcadas com GPS. Esses índios podem não estar nos vendo, mas sabemos exatamente onde eles estão, quantos são, e fotos deles estão disponíveis para qualquer um no Google Earth. Não tenho dúvidas de que, se um dia suas terras nos interessarem para a construção de barragens hidrelétricas, por exemplo, em pouco tempo estará justificada a invasão. Este roteiro não é novo, ainda se repete depois de 500 anos de história.
Quanto ao exercício da cidadania, você percebe mudanças?
Está na moda falar em cidadania, ser responsável pelo coletivo, mas estamos longe de uma noção verdadeira de que nossos atos afetam a vida do próximo e precisam ser repensados. Em alguns lugares onde tenho trabalhado sinto que a noção de se viver numa comunidade está bem mais incorporada do que aqui. Tenho um caso recente. Estava em Toronto e fui almoçar na casa de um produtor amigo. Ele serviu salada e depois tinha uma lentilha, pois sabe que sou vegetariano. Quando foi trocar meu prato, falei: “Não precisa, pode deixar”. Ele respondeu de bate-pronto: “Não tem problema porque eu espero a máquina encher, não vou gastar mais água lavando mais este prato”. Eu havia pensado em ficar com o prato para aproveitar o molhinho de azeite, mas a noção de que seus atos podem repercutir na vida dos outros, de que a água é um bem coletivo, está tão impregnada que ele nem entendeu minha intenção. No Brasil ainda estamos longe desta noção de cidadania. Mas está melhorando.
Alguma articulação ou movimento social, no Brasil e fora dele, chamou sua atenção nos últimos tempos?
Sim, os movimentos ambientalistas que questionam o nosso modelo de desenvolvimento, o business as usual. O impressionante é que os jornais comemoram o crescimento do consumo ou da economia como se isso ainda fosse saudável. Há movimentos mostrando que precisamos urgentemente fazer uma curva na história e buscar outros modelos de desenvolvimento. Os movimentos que lidam com estas questões são os mais importantes, hoje. Infelizmente nossos homens públicos trabalham com a perspectiva de futuro de três ou quatro anos, que é o quanto duram seus mandatos. Difícil construir um mundo sem perspectiva de longo ou longuíssimo prazo. Estamos ameaçados justamente por essa lógica.
E como fica a questão do consumo diante disso? O seu, o meu, o nosso?
Temos que mudar nosso padrão de consumo, rapidamente. Esta mudança precisaria ser como uma mobilização de guerra, na qual todos entendessem que precisam abrir mão de alguma coisa para poder prosseguir. Tenho feito mudanças nesse sentido na minha vida, mas talvez só quando os efeitos da carência de recursos baterem à nossa porta é que mudaremos de fato nossas vidas. A lógica do dinheiro como motor da sociedade é tão perversa quanto difícil de ser alterada. Sabemos, por exemplo, que há falta de alimento no mundo, e sabemos também que 40% do alimento produzido é desperdiçado no processo de produção, transporte, comercialização e preparação para o consumo. Contudo, quando olhamos para esta questão, a maneira de atacá-la é sempre o aumento da produção, e não o uso racional do que já existe. Para quem produz, transporta ou comercializa alimentos, o desperdício é boa notícia, pois significa maior demanda, mais renda. A racionalização do uso dos recursos é a nova economia de que o mundo precisa.
Li recentemente um editorial do Estadão [jornal O Estado de S.Paulo] no qual o Washington Novaes [jornalista e ambientalista] comentava o gosto dos governos pelas grandes obras. Dava exemplos de como pequenas medidas poderiam ser mais eficazes, mais racionais, falava de outra maneira de pensar a administração pública e a organização da sociedade. Um dos exemplos era a notícia de que a Caixa Econômica Federal, a partir de agora, não vai mais financiar moradias em lugares onde não houver água e esgoto disponíveis. É uma loucura pensar que até ontem o Estado financiava moradias que usavam os rios como esgoto. O texto falava sobre desperdício e trazia dados interessantes: no Brasil desperdiçamos 40% da água usada, e o estado de São Paulo vai fazer uma reformulação para desperdiçarmos 24%. No Japão desperdiçam-se 3%. Seguindo a mesma lógica, o pensamento dominante quando se fala em água é a construção de novas barragens, novos reservatórios, tratar mais água. Pensa-se sempre em novas obras, e no entanto há muita brecha para a racionalização. Temos que chegar ao ponto em que 100% do que é produzido possa ser reciclado, mas isso demanda uma mudança cultural inimaginável.
Essa mudança é compatível com o capitalismo?
Não, a lógica do capitalismo é expandir, crescer. Isso poderia fazer algum sentido num mundo inesgotável e infinito, mas já sabemos que não é mais o nosso. Um novo modelo de desenvolvimento implica uma dificílima e demorada transformação nas nossas vidas. Ela virá com mais ou menos dor. A questão que os capitalistas colocam é: se vamos consumir menos, para onde vai o trabalho e a atividade humana? Uma resposta é que o trabalho pode migrar da área de produção de bens de consumo para áreas como educação, cultura, serviços. A aspiração das populações, hoje, é por bens de consumo, roupas, automóveis. A mudança cultural necessária é passarmos a valorizar bens não materiais. Educação, esporte, música, ciência são atividades humanas que não consomem tanto o planeta e preenchem mais a alma do que a busca desesperada pela reposição de bens, que é uma das principais razões pelas quais se trabalha e se vive, hoje.
Ao longo da história, vários movimentos sociais lutaram pela liberdade. Você acha que a liberdade ainda é uma questão?
Claro que é. A plena liberdade política é desfrutada por apenas uma parcela da população mundial. Mas, mais do que a liberdade de influir nas decisões que afetam a própria vida, a pobreza é o maior limitador da liberdade humana. Sem justiça social não há liberdade, e a injustiça social ainda é dominante no planeta. Em todos os países encontraremos diferenças entre ricos e pobres, maiores ou menores, mas não há lugar onde a diferença seja tão grande quanto no planeta Terra como um todo. A diferença entre países com altas taxas de consumo e países sem margem para desfrutar de alguma autonomia é mais brutal do que qualquer diferença interna entre os que têm e os que não têm. Um país que consome sozinho 25% dos recursos do mundo inexoravelmente estará tolhendo a liberdade de outros.
Que outros direitos e valores há a serem conquistados, hoje?
Creio que a noção de que somos parte de uma mesma humanidade e de que dependemos um do outro, que afetamos a vida do outro, precisa ser mais bem compreendida. Mais do que nunca, estamos todos conectados. A dona Kátia Abreu [senadora pelo PSD-TO, líder da bancada ruralista do congresso] ainda não entendeu que a expansão das fronteiras agrícolas na Amazônia, que ela defende, vai gerar seca e derrubar a produção de soja de sua fazenda em Campos Lindos, no Tocantins.
Ao mesmo tempo em que descobrimos essa interdependência, vivemos um individualismo exacerbado.
Pode parecer paradoxal, mas não creio que a busca de uma identidade ou da própria individualidade seja conflitante com a noção de pertencer a uma grande comunidade global. Todos queremos ter uma cara, deixar de ser invisíveis, mas ao mesmo tempo vejo mais pessoas engajadas em lutas e num pensamento de cardume. A compreensão de que somos uma só espécie passa pelo autoconhecimento.
Como você vê as próximas gerações coexistindo nesse planeta cada vez menor?
Menor e mais rápido, vale lembrar. Meus netos irão viver num mundo muito diferente do meu. Passei a infância em um mundo natural ainda em expansão, onde a manteiga era feita na fazenda e a fruta, colhida no pé. Onde meu avô dizia que “desde que o mundo é mundo as coisas são assim e assim ficarão”. Meus netos vão viver num mundo onde as transformações acontecem a cada bimestre, um mundo que é como uma aldeia, totalmente conectado e sem muitas fronteiras, onde a busca pelo crescimento perderá o sentido. Segundo o último Censo, a população brasileira parou de crescer e já começa a envelhecer.
Sem população em crescimento, o esforço para suprir bens e alimento para quem está chegando deve ser deslocado para o esforço de distribuir melhor os bens, alimentos e energia já disponíveis. Nessas condições, me parece mais fácil organizar a sociedade. Mas a possibilidade de termos que conviver com populações refugiadas da fome, da falta de água, do aumento do nível do mar, assim como os desafios para mudarmos nossa matriz energética ou conseguirmos manter a produção de alimentos com menos água, coloca no futuro variantes tais que qualquer tentativa de previsão se torna quase um exercício de adivinhação.
Ha outro aspecto, a velocidade do novo mundo. Quando penso em futuro sempre me sinto enganado. Prometeram que a tecnologia iria libertar o homem, dar-lhe mais tempo para cuidar do espírito e para o lazer, mas aconteceu o contrário. Viramos prisioneiros das máquinas. Antes eu saía do trabalho às 7 da noite e só voltava no dia seguinte. Hoje, conectado, me vejo respondendo emails e trabalhando em qualquer hora e lugar. Todo mundo recebe solicitações de trabalho durante o almoço, nos finais de semana. A tecnologia nos transformou em trabalhadores compulsivos. Nem nas férias nos desconectamos dessas maravilhas tecnológicas.
Mas talvez o trabalho fosse mais separado do lazer.
No meu caso, trabalho e lazer são praticamente a mesma coisa. Mas sei que sou um caso raro e, mesmo assim, gostaria de ter um tempo em que pudesse virar o disco. Para quem tem funções que exigem mais esforço e menos criatividade, a tecnologia realmente veio para diminuir os prazos e roubar o tempo que se tem para desfrutar da vida e ser feliz.
Você vê a possibilidade de uma governança global?
Será inevitável. O rio Ganges ou o Amarelo, e a população que eles alimentam, não dependem de decisões da Índia ou da China para continuarem a correr. Eles dependem do corte e emissão de carbono no mundo todo, da preservação das florestas que ainda existem, de modo que o planeta não se aqueça mais e as geleiras do Himalaia, que os alimentam, continuem a se formar anualmente. Como esses, há muitos outros exemplos de problemas cujas decisões nacionais, nos países onde podem ser tomadas, não conseguem mais dar conta. Creio que tentativas de governança global como a do Mercosul ou da Zona do Euro são ensaios para um mundo em que as decisões precisam ser compartilhadas. A ONU não funciona muito bem porque os Estados Unidos, apesar de serem seu maior financiador, não respeitam muito suas decisões. Mas a tendência é cada vez mais organizações globais passarem a ter mais influência no mundo. Precisamos urgentemente de organizações que regulem as questões ambientais no planeta. Nada mais razoável, dada a nossa interdependência.