Por Urda Klueger.
Já para o final da tarde, chegamos, afinal, à simpaticíssima cidade de Presidente Roque Sáenz Peña. Em outros lugares da Argentina, em outras ocasiões, eu já pudera observar como a população vai toda para as ruas nos domingos, inclusive nos domingos à noite, coisa bastante estranha para um morador do Vale do Itajaí, como eu, que nos domingos à noite quer mais é se encorujar o mais cedo possível para estar bem descansada na segunda de manhã, para recomeçar a semana de trabalho. Presidente Roque Sáenz Peña não fugia à regra: era domingo, boca da noite, e a população inteira estava pelas ruas e abria espaço para aquele bando de marcianos que, de repente, invadia a simpática cidade.
Deveríamos ir para determinado hotel, onde tínhamos um encontro, e parávamos para perguntar a direção do hotel, e os moradores queriam morrer de gentileza, penso que fariam qualquer coisa por nós. Perguntavam-nos de onde éramos, e quando nos sabiam brasileiros, desmanchavam-se em francos e prazerosos sorrisos:
– Que lindo! Obrigada, obrigada por terem escolhido a nossa cidade para dormir! – e queriam nos apertar as mãos, e não sabiam mais o que fazer para serem gentis. Emocionava-me com aquela gente que se encantava com o fato de sermos brasileiros, e pensava que um dia haveria de contar aqui aquele fato, pois há tanta gente, no Brasil, que fala mal do povo argentino sem, às vezes, sequer conhecer alguém de lá! É claro que temos nossa rivalidade no futebol – mas daí a chegarmos a uma quase xenofobia, como às vezes vejo por aí, vai uma grande distância. Vale lembrar, aqui, um fato que vivi no curto espaço de tempo em que fui professora de História, em 2001/2002. Na ocasião, um dia perguntei aos meus alunos:
– O que vocês acham do povo argentino?
100% deles foram taxativos: eles odiavam o povo argentino. Eu engoli. Perguntei quem deles conhecia um argentino. 100% deles não conhecia. Aprofundei a pergunta: quem deles tinha um pai, ou um tio, ou um padrinho, ou alguém que conhecesse um argentino. A resposta foi na mesma proporção: ninguém tinha. Daí quis saber por que eles odiavam o povo argentino. Eles não sabiam. Perguntei se era por causa do futebol. Houve opiniões variadas, que incluíam ou não o futebol. Havia quem respondesse que era porque os argentinos eram mal-educados, prepotentes, etc.
– E como é que vocês sabem tal coisa se não os conhecem?
Meus alunos ficaram sem resposta e eu fiquei com uma grande preocupação. Meus alunos eram crianças de sexta série e estavam representando os pensamentos dos pais – o que estava acontecendo, mesmo, no sul do Brasil, para que as crianças estivessem se criando quase que dentro de uma xenofobia? Tenho certeza de que alguma coisa muito perigosa está se formando entre nós, brasileiros, para vermos criancinhas de sexta série odiando argentinos que não conhecem. Não sei como isso é promovido, mas o fato é que existe. Conto, então da alegria da gente de Presidente Roque Sáenz Peña ao nos receber, para dar um exemplo da diferença, de como os argentinos nos querem bem. Talvez, em algum momento, este meu pequeno relato possa servir para levar alguém à reflexão. As conseqüências de uma xenofobia são imprevisíveis, e podem ser muito más.
Há que registrar, também, que diante da temperatura quente, naquele dia viajávamos de camisetas, e em homenagem ao povo argentino, já que ele nascera naquele país, eu usava uma camiseta com a fotografia de Che Guevara. Pela manhã, meus amigos motociclistas tinham ficado um tanto quanto desconcertados ao me verem com aquela camiseta – há que se lembrar que eram amigos criados pela cartilha do Capital. Respeitaram-me, no entanto, embora tivesse havido um ou outro comentário assim de “quem seria o argentino que prestaria atenção àquilo?” Eu lhes disse que aquilo tinha importância, sim, e de tarde, quando já começávamos a sair do Chaco e paramos num posto de gasolina, de repente vi-me rodeada por um pequeno grupo de jovens que estavam por ali, e que vieram até mim atraídos pela minha camiseta. Disse-lhes que estava a homenagear o povo argentino, e eles entenderam perfeitamente, e me deram seus mais bonitos sorrisos, e apertaram a minha mão daquela forma que a ternura faz apertar. Quase 37 anos depois da sua morte, Che me unia a um grupo de jovens argentinos como irmãos que éramos. Há coisas e energias que não têm preço, no mundo. Um dia muito mais gente vai entender.
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Chegamos, afinal, à fronteira da Argentina. Estava-se há 4.200 metros, mas agora havia um bom sol que aquecia. Havia a Aduana e mais umas outras poucas construções no meio do nada, quase tudo coisa pequena, quase tudo pequenas casinhas de adobe. Os guardas da fronteira eram muito simpáticos, e eu morria de fome – perguntei a eles se em algum lugar poderia comprar algo para comer. Indicaram-me distante casinha de adobe, onde uma índia tinha um pequeno comércio. Enterrando na areia solta as botas de D. Rose, fui até lá, e consegui bolachas, água e um potinho de doce-de-leite. Depois que comi alguma coisa senti-me melhor, e pude conversar um pouquinho com os simpáticos guardas, que me contaram que ficavam ali naquela distância perdida 30 dias de cada vez, que estavam acostumados àquilo, etc. Na verdade, eu estava com uma pena danada de estar indo embora da Argentina, daquele país de gente tão parecida com a nossa, com a qual eu me identifico tanto! Disse isto aos guardas, e eles demonstraram contentamento, e até quero falar mais um pouquinho no assunto.
Eu sou uma brasileira com uma grande paixão pelo Brasil – considero que a melhor parte de uma viagem, por melhor que ela seja, é o momento de chegar de volta ao Brasil. Sempre sinto um grande prazer ao encontrar os americanos dito latinos, e este prazer aumenta quando estou longe, muito longe, principalmente em outros continentes, por exemplo. Encontrar um americano dito latino é sempre bom demais, não importa muito a sua nacionalidade: mexicanos, guatemaltecos, cubanos, venezuelanos, colombianos, equatorianos, bolivianos, e por aí vai. Encontrar um argentino, no entanto, é encontrar um irmão – ninguém no mundo pensa tão parecido com nosostros, brasileños, quanto os argentinos. Eu acho que um argentino é mais parecido conosco que os próprios portugueses, que falam a mesma língua que nós. Os portugueses, apesar da língua, pensam como europeus. Nós somos americanos, não temos a mesma identidade, a mesma forma de encarar o mundo que os portugueses – mas nossos vizinhos argentinos têm. Não somos iguais, claro – mas somos muito próximos! Aqueles dias de viagem pela Argentina, apesar de ter constatado algumas diferenças das quais ainda não sabia, mais me fez ver as semelhanças – viajar pela Argentina é muito parecido a viajar pelo Brasil: usam-se os mesmos cartões de crédito, as mesmas formas de postos de gasolina, de lanchonetes e restaurantes, tipos parecidos de telefones, de hotéis, enfim, temos muita semelhança mesmo, principalmente quando a gente se dá conta que somos mais ou menos comprados/vendidos pelo Capitalismo Internacional, de formas muito parecidas, o que se reflete muito na economia. E se tirarmos o futebol, os dois povos são muito parecidos na comunicação, na simpatia, etc. E se pensarmos mais ainda, vamos ver que somos muito parecidos, inclusive, no futebol – mas isto é outra discussão – melhor nem começá-la aqui, pois ela acirra os ânimos!
Então, estava eu com pena de deixar aquele país tão querido, e os guardas da fronteira entenderam e gostaram disso, e como foram amáveis! Eram meninos com carinhas de índios, e tão simpáticos! Como disse atrás, a temperatura subira e eu me sentia melhor – abandonei o carro de apoio, voltei à garupa do seu Chico, e foi assim que deixei a Argentina, lá naquela fronteira que se chama Passo de Jama.
Pequenos textos do livro “Viagem ao Umbigo do Mundo!, escrito por Urda Klueger, publicado em agosto de 2006.
Imagem: latitud-cero.com.ar
AMEI TUDO O QUE VOCÊ FALOU DOS ARGENTINOS.
SENTI A MESMA COISA AO VIAJAR PARA LÁ, TANTO QUE JÁ FUI A BARILOCHE 3 VEZES E ESTOU PRESTES A IR LÁ NOVAMENTE.
PARABÉNS POR TER FALADO TUDO ISSO.