Por Fernando Horta.
“Os EUA vão preservar a paz pela força”. Sobre esta afirmação, o presidente Trump apresentou hoje (18/12) sua doutrina de segurança nacional. Foi o discurso mais duro e violento desde o início da Guerra Fria. Trump inclusive retomou um conceito antigo de “nações prisioneiras” (captive nations) usado inicialmente por Eisenhower, no início da Guerra Fria. Guerra que Trump declara estar novamente ocorrendo e nomina abertamente as “nações rivais” de Rússia e China.
Trump determinou que a partir de seu governo a economia será tratada como assunto de segurança internacional. Por um lado, isto é mais honesto do que outros presidentes fizeram, pois, o interesse econômico de uma potência é sempre uma questão a de segurança nacional. Mas, tal afirmação aberta e direta remete a um período do século XIX chamado de “diplomacia das canhoneiras”, em que a Inglaterra terminava suas discussões econômicas com sua armada. Trump deixa claro que isto pode voltar a acontecer e já de imediato legitima a saída dos EUA do Acordo de Paris (sobre o clima) e do Tratado Transpacífico (TTP). Tudo o que venha a prejudicar a “economia” dos EUA será tratado como questão de segurança e não mais como mercado. Trump anunciou restrições ao comércio e inovação no campo de tecnologia de segurança, por exemplo. O livre-mercado de Trump, ao menos internamente, se dobra aos interesses nacionais de forma clara.
Os EUA devem crescer porque “o PIB é a nossa principal arma”, disse o presidente norte-americano, logo após informar que o orçamento de defesa dos EUA superará este ano 900 bilhões de dólares. Apenas a título de comparação o PIB brasileiro é de 1,7 trilhão de dólares. O problema é que a fala de Trump abre o espaço para que discussões comerciais, discussões sobre propriedade intelectual, discussões sobre corrupção internacional sejam todas militarizadas pois, podem conter “ameaças à segurança” dos EUA. Não, o livre-mercado não é mais a principal forma de engajar o mundo num sistema de reciprocidade. Trump declara que o “interesse e segurança” dos EUA estão acima.
“Uma nação sem fronteiras não é uma nação”. Trump reforça, assim, que os EUA se fecharão e retoma uma certa “caça às bruxas” pedindo que cada cidadão faça a sua parte na luta contra “ideologias inflexíveis”, nominando as “radicais” muçulmanas. O apelo emotivo e patriótico ao cidadão comum traz consigo a ideia de que os conflitos sociais devem ser ainda majorados nos EUA, eis que a consciência e o patriotismo de cada cidadão americano são suficientes, aos olhos do governo, para o julgamento de suas ações. Se cada cidadão americano se transformar num “vetor” da ideia de segurança de Trump, podemos esperar uma sociedade que, ao invés de se fortalecer, se esfacelará.
De uma forma geral, o discurso de Trump é o mais agressivo e violento desde o início da Guerra Fria. Desmonta princípios que foram desde a década de 70 tornados base na política externa norte-americana. A “reciprocidade”, no sentido anterior a Trump, significava que os EUA recebiam e partilhavam valores sem necessariamente ter primazia de uns sobre os outros. Trump afirma que “o povo americano é generoso”, mas “nossas alianças serão com quem partilha os valores americanos”. No fundo, isto significa fazer alianças e respeitar quem “compra” o pacote norte-americano. Este pacote significa os valores deles, as fronteiras fechadas, o livre comércio que enriqueça a eles e nenhum tipo de ação global em que os EUA tenham que ceder ou arquem com um peso “demasiado”. Trump assinalou que alianças dependem que “cada um carregue o seu fardo”.
A chamada “pax americana”, que emerge no século XX após a segunda Guerra (ainda que a Guerra Fria seja um ponto a ser discutido), era baseada numa ideia de resgate adiado das vantagens comparativas americanas. Os EUA, que emergem da segunda guerra como a única grande potência evitam impor ao mundo um sistema totalmente autocentrado com demasiado favorecimento comparativo dos norte-americanos. Assim, ainda que o mundo tenha que ter aceitado o dólar, uma série de investimentos americanos foram lançados a países que não devolveram financeiramente o que foi investido. Os EUA preferiram criar um sistema de garantias internacionais de longo prazo ao invés de promover uma postura agressiva de retomada lucrativa imediata. Trump encerra este ciclo e avisa que os EUA “estão de volta ao jogo e vão ganhar”.
Há aí três grandes perigos. Em primeiro lugar, se os países que foram diretamente nominados (China e Rússia) se sentirem ameaçados, já que, para Trump, tudo virou uma “questão de segurança”. Pela “doutrina Trump” pode-se atacar a China preventivamente, caso ela esteja usando de táticas “não cooperativas” em termos de economia. Os organismos internacionais deixam de ser uma instância final dos conflitos e isto pode trazer um recrudescimento das animosidades entre os países com maior economia do mundo. Nisto Trump aposta “criar milhões e milhões de empregos”, pelo revigoramento da industrial bélica nacional, como, aliás, foi a economia americana desde o final da Guerra. Lucrando e crescendo com o “complexo-industrial-militar” enquanto dizia ao mundo que estava “preservando a paz”.
O segundo grande problema da ideia de Trump é que, historicamente, um país que devota grande parte de seus esforços para “impor a paz pela força” não só não consegue seu objetivo, como se desgasta econômica e diplomaticamente. Este é o final do império romano, por exemplo. E pode ser o final da hegemonia americana. Ao escolher pelo duro caminho do confronto internacional sem um objetivo claro, os EUA colecionarão inimigos e verão seus meios materiais sempre insuficientes, dado que, sem alvos claros a quem confrontar, o gasto será sempre “insuficiente”.
O terceiro problema é que quando colocada a segurança dos EUA na frente de qualquer questão econômica, ecológica ou de instituições internacionais, Trump se esquece do planeta e da segurança da espécie humana. A saída do Tratado de Paris remete ao ignorar das mudanças climáticas que sua administração já tinha ensaiado. A estratégia de Trump, de retomar uma corrida armamentista, vai levar o planeta ao limite de onde o ecossistema não mais conseguirá se recompor. Trump celebra o consumo, o enriquecimento e os novos projetos de defesa dos EUA, e pede que “cada americano faça a sua parte”. Não poderia ter forma pior de começarmos 2018. Se tudo é questão de segurança e se os EUA apenas se venderão ao mundo, isto significa um isolacionismo intervencionista de cunho extremamente agressivo.
O século XXI começa mal. Começa muito mal. E talvez venhamos a chama-lo de “curto século XXI”.
Fonte: Jornal GGN