Nós havíamos avisado, mas ninguém acreditou

Por Evânia Reich, para Desacato.info.

“A época hitleriana nos ensinou entre outras coisas que é estupido ser esperto. Quantos argumentos bem fundamentados os judeus forneceram para mostrar que Hitler não teria nenhuma chance de chegar ao poder em um momento que sua ascensão já era tão evidente! Eu me lembro de uma conversa na qual um economista afirmava que era impossível colocar toda a Alemanha em uniforme, dando como argumento que os interesses dos cervejeiros da Bavária se opunham. Em seguida, outras pessoas bem informadas pretendiam que o fascismo era impossível no Ocidente. Através de suas besteiras, esses espíritos espertos facilitaram, portanto, a tarefa dos bárbaros”.

Essas palavras são dos filósofos Adorno e Horkheimer, no livro, A Dialética do Esclarecimento, publicado pela primeira vez em 1947. Adorno e Horkheimer se exilaram para poder continuar trabalhando e escrevendo, durante a Alemanha nazista de Hitler.

O que esse parágrafo tem a ver com a situação pela qual estamos passando hoje?

Durante o período que antecedeu as eleições para presidente, este ano, no Brasil, diversos artigos foram escritos, em jornais de circulação comercial ou em revistas acadêmicas, diversos debates foram travados nas universidades e fora delas, para tentar entender o que estava acontecendo com o Brasil e seu povo. A questão era discutir e entender o que levava uma grande parcela da população a optar por um candidato que proclamava um discurso homofóbico, racista, misógino e de um ódio por todos os seus adversários e pelas instituições, mal ou bem, ainda funcionando no Brasil. O discurso de tentativa de esclarecimento só foi possível porque um passado teria nos ensinado que não devemos negligenciar o discurso de ódio de um candidato à Presidência. Não foi preciso ler Adorno e Horkheimer para os mais esclarecidos chegarem à conclusão de que um perigo eminente estava batendo a nossa porta. Passados 70 anos de uma história avassaladora, o não retorno da barbárie, tantas vezes suplicado por Adorno em seus escritos “Educação após Auschwitz”, deveria estar cravado em nossas mentes, mesmo sem a leitura desses intelectuais daquela época.  Tínhamos a obrigação de não negligenciar um discurso que menosprezava uma parte dos seres humanos. Tínhamos o dever de levar a sério as palavras de um presidenciável que afirmava que as mulheres devem ganhar menos do que os homens, que os negros são preguiçosos, que culpabilizava os pobres por sua condição de pobreza, que o Estado deve ser mínimo, e tantas outras frases que nos entristecia.

Mas, apesar dos diversos alertas dados à população, ela decidiu, em sua maioria válida nas urnas, se manifestar pela mais violenta recusa ao discurso do esclarecimento. Quanto mais o eleitor da extrema direita era esclarecido, mais ele negava tal esclarecimento. A cada certeza avançada pelo esclarecedor, que o pior para o Brasil estaria por vir, mais o eleitor acreditava na sua verdade fabricada. Quanto mais lhe era dito que o maior sofredor seria ele próprio, mais ele acreditava que esse discurso informativo e esclarecedor era falso e corrompido. Todos que tentavam lhe convencer da iminente derrocada do Brasil ao fundo do poço eram seus inimigos mais profundos. Representavam uma elite do qual ele não fazia parte. Na maioria das vezes a dos intelectuais, pelos quais o seu ódio era tão forte que a prova de que o maior prejudicado seria ele, era uma assertiva vã. O discurso autoritário tem sempre como primeira meta banir os intelectuais. Não é à toa que as universidades públicas foram as primeiras a serem invadidas pela violência do autoritário.

Entre gritos e delírios, eles foram às ruas festejar a vitória. Uma vitória que não tardará em se tornar uma amarga derrota para aqueles que votaram para a extrema direita, mas também para todo o povo brasileiro. Não haverá vencedor neste jogo. E não haverá mais jogo. Deverá haver muitas lutas. Como escrevem Adorno e Horkheimer “não é fácil discutir com um fascista. Quando alguém lhe toma a palavra, ele considera essa interrupção como um afronte. Ele não consegue alcançar o esclarecimento, e nunca alcançará porque não é isso que lhe interessa?. O que lhe interessa é a derrota do outro.

Bolsonaro governará para a derrota do outro. E o outro é todo o povo brasileiro que se encontra no conjunto dos dominados. O trabalhador que acorda cedo para tentar ganhar um salário digno para se sustentar. O pobre desempregado e desamparado, que necessita do olhar especial e diferenciado das instituições públicas. O menino de rua que sonha em se tornar jogador de futebol, mas que já está feliz quando consegue vender as suas bugigangas. O homem do campo, cujo agronegócio é um conceito do qual o seu mundo não faz parte. Os índios que perderão suas terras, sua dignidade, ou talvez suas próprias vidas. O povo quilombola que é odiado por um racismo presidenciável. As meninas que se prostituem para conseguirem comprar suas meias, seus perfumes e sua comida, que serão doravante vistas com um olhar ainda mais violento pela parte de seus clientes desprezíveis. As tantas mulheres desrespeitadas, maltratadas e abandonadas por seus homens, que serão ainda mais acusadas por um falso moralismo, arrogante e misógino. O trabalhador da cana de açúcar, do remoto Brasil, que será jogado na vala dos indigentes. Os tantos consumidores de craque, moradores de rua, que são acordados com jatos de água fria pela mão do descaso e do autoritarismo de governantes eleitos para a elite. O trabalhador da classe média, aquele mesmo que votou contra seus próprios interesses. Esse já está na iminência de perder seus direitos trabalhistas.

Uma boa parte da elite brasileira continuará acreditando por um bom tempo que por pior que o governo Bolsonaro possa ser, suas medidas não lhe atingirão. O alto funcionário público continuará ganhando o seu robusto salário. Os grandes investidores no mercado financeiro continuarão ganhando muito dinheiro, os bancos permanecerão com grandes lucros e as grandes empresas também, a custa da redução de seu quadro de trabalhadores. Para aqueles que possuem um capital cultural e econômico de classe A, também as primeiras medidas de Bolsonaro não lhe atingirão. Toda essa elite brasileira sempre achou que se fez sozinha, e que os méritos de seu sucesso e o seu conforto material é apenas fruto da sua inteligência e do seu trabalho. Outro dia vi na televisão uma matéria extremamente tendenciosa sobre o índice do aumento da informalidade e dos pequenos negócios. Uma das entrevistadas, uma alta funcionária recém-demitida de uma grande empresa, afirmou que para ela nunca teve crise, pois com o dinheiro da demissão ela abriu um restaurante requintado em uma das ruas mais badaladas de São Paulo. Para toda essa classe, o Estado representa muito pouco. Eles acreditam piamente que não precisam de um Estado. Acham que o seu dinheiro pode tudo comprar: saúde, educação, estradas, e até mesmo segurança. Vivem reclamando do Brasil, mas o Brasil que eles querem não é o mesmo que aquele do primeiro grupo. Eles seguem acreditando que não precisam do Estado, enquanto os primeiros sabem que sem o Estado eles não conseguirão progredir.

O interessante destas eleições foi o resultado dos votos. Boa parcela da população brasileira que mais precisa do Estado e segue acreditando que apenas em um Estado forte, protetor e responsável com seus cidadãos suas vidas podem melhorar, votou no candidato da esquerda. Não desistiu de apostar no discurso que lhe prometeu mais proteção, apesar de todo golpe mediático e todos os problemas que ocorreram nos últimos governos dessa mesma esquerda. A outra parte, os ?self-made man?, acreditam que não precisam do Estado e acha que quem dele precisa é um fraco, um derrotado, um dependente, encostado, como se diz na gíria popular brasileira, acabou votando no candidato que prometia destruir o Estado.

O que se sucederá desta história, o filósofo não pode prever. Como dizia Hegel, filósofo alemão do século XVIII-XIX, ?a Coruja de Minerva só levanta voo ao entardecer?.

 

Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC.

 

 

 

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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