Por Elaine Tavares.
Dias desses vi na televisão um filme que já havia assistido nos anos 90 e quem naqueles dias, já me causara profunda tristeza. Chama-se “O senhor das moscas” e mostra um grupo de crianças perdidas numa ilha, depois da queda de um avião, fugindo da guerra. Na ilha, sozinhos, eles têm de se organizar e aí aparecem todos os estereótipos do humano. O ditador, o herói, os elementos da democracia, o misticismo fundamentalista, a ciência, os covardes, os perdidos, os fracos, o selvagem. A película é inspirada em um livro do mesmo nome escrito na década de 50 que, em tese, tenta mostrar o quanto o ser humano carrega dentro de si o germe da corrupção. E aí não se trata desta corrupção que vemos na TV quando um suborna o outro, mas a corrupção existencial, essa que torna um garoto normal e educado num ser sem qualquer sentimento ou moral: um selvagem, na acepção mais crua da palavra.
O senhor das moscas tenta mostrar que há algo de podre no humano que, cedo ou tarde se manifesta, como já havia ousado propor George Owen, no Revolução dos Bichos. Mas, ao mesmo tempo também aponta a presença do humano justo, digno, bondoso e capaz de conviver com o diferente. Este, ao longo do filme, em que um deles vai assumindo o controle de todos os garotos pelo medo e pela força, vai ficando sozinho. Até ao ponto de ser caçado por todo o grupo, que comandado pelo chefe, se dispunha a eliminar o menino que ousava instituir uma vida de liberdade e respeito pelo outro, nas suas debilidades e belezas.
É uma experiência dolorosa que só acaba com o quê? Com achegada da força, vinda de fora. O exército libertador.
Por algum motivo esse filme me faz pensar no que acontece no Rio, hoje. Por viver tão longe, não me sinto muito capaz de fazer uma boa análise dos fatos. Há tantas variáveis a considerar. O tráfico, duro e cruel, a ganância imobiliária que quer as terras dos morros, a violência da polícia, a corrupção, a ausência completa do Estado nas áreas de favela, os barões da droga que estão no asfalto, enfim… tanta coisa, e outras mais fora do meu olfato. Mas, de alguma forma vejo cada um daqueles meninos do “senhor das moscas” se expressando no turbilhão de notícias e opiniões sobre as ocupações dos morros cariocas, dentro do grotesco “espetáculo” montado pelas emissoras de televisão.
A ascensão dos chefetes das drogas nas comunidades empobrecidas não é coisa que brota do nada. É fruto de toda a omissão do estado burguês diante das promessas que faz. Não há saúde, não há escola, não há lazer, não há vida. O capitalismo suga todas as forças dos trabalhadores e os joga uns contra outros. O povo se vira como pode, equilibrando-se na corda bamba entre a lei e o tráfico. E, aí, assomam todos os tipos de seres: os bem intencionados, os heróis, os selvagens, os fracos, os bondosos, os medrosos, etc… Mas, como bem analisa o professor Nildo Ouriques, o povo é sábio e só sobrevive porque sabe avaliar a correlação de forças do espaço onde vive. Ninguém quer viver sob o terror dos soldados do tráfico, mas tampouco quer a presença de uma polícia corrupta, racista e violenta. É um fogo cruzado que nunca pára.
Hoje a polícia ocupa o morro e a TV expõe as gentes a celebrar o fim de um tipo de opressão. Mas e amanhã, quando o tempo passar, e as câmeras se voltarem para outro tema? E se a polícia sair? E se o Estado não cumprir de novo com suas promessas? E se voltar o terror do tráfico? E se o Estado não agir no espaço dos chefes graúdos, os que vivem no asfalto? Há uma coisa que se chama sobrevivência. As pessoas querem seguir suas existências, de alguma forma, e de preferência bem. Como viveram até hoje, sem o Estado e sem a polícia? Porque são sábias e vergam tal qual o feixe, ao sabor do vento. Se não fosse assim não estariam vivas.
Mas, e amanhã, quando com as UPPs todos os morros estiverem livres da força do tráfico, se as empresas de turismo quiserem os terrenos onde vivem as gentes para ganhar dinheiro durante as festas das olimpíadas e da copa? Haveremos de ter a mídia aliada ao povo do morro? Haveremos de ver os comentaristas das redes nacionais defendendo as “pobres” famílias das favelas? Não! Não veremos. Será uma outra batalha a ser travada tal qual a do personagem do filme do senhor das moscas. Uma solitária batalha contra o capital, e aí não haverá um exército libertador. Pelos menos não um de fora.
A história dos empobrecidos é uma recorrente história de perdas. Coisa poderosa demais. Os de baixo estão sendo sempre colocados diante de suas derrotas, em todas as grande batalhas que travam por vida digna e farta para todos. A força do poder solapa e arrasa, fazendo com que as pequenas vitórias se desfaçam nas brumas. Isso cria uma atmosfera de profunda impotência. E não deveria ser assim. Se o povo empobrecido decidisse tornar-se quem é, as coisas seriam diferentes. Mas, para isso haveria que se despertar a consciência de classe, sair da emergência, da difícil tarefa de manter-se com a cabeça para fora do lodo mortal da sobrevivência cotidiana no reino do capital. Tanto trabalho a ser feito, tanto suor, quase um trabalho de Hércules.
O Rio de Janeiro é esse campo onde reina “o senhor das moscas”, uma espécie de pedaço do campo geral que é o mundo capitalista. No filme, é a cabeça de um porco que representa o mítico, o poder, a força, o símbolo de algo intangível, inalcançável, a coisa etérea que mantém todos os meninos sob um domínio incapaz de se desfazer. Vejo esse símbolo, agora, na caveira do BOPE. Em volta dela arma-se toda essa “festa” de libertação do morro. Mas o que esperar de uma força que tem a caveira como símbolo? Já bem disse Muniz Sodré num recente artigo sobre os fatos. Esta não é uma luta dos bonzinhos contra os malvados. Há tantos lados e tantas variáveis nestas personagens.
O Brasil vive nestes dias uma espécie de euforia desenvolvimentista. Desde o segundo governo Lula as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) estão se espalhando por vários cantos do país, como um símbolo da melhora da vida. Mas, muitas destas obras são questionáveis, não representam soluções reais para os problemas. Alguns, elas até aprofundam. Ainda assim, incensa-se sem sendo crítico. Agora, com o pré-sal, mais uma onda de “melhoras” deve atingir o país. Dinheiro do petróleo vindo aos borbotões. Para quem? Até onde esta onda alcançará as gentes simples? Receberão migalhas ou participarão do banquete, como convidadas? Garantirão aos milhões de jovens deste país a possibilidade da vida digna? Ou terão eles que enfrentar o “senhor das moscas”, como sempre foi?
Não sei. Tudo está aberto. Os meninos armados que hoje servem ao tráfico – urdido muito além dos morros empobrecidos – precisam de muito mais do que promessas. Precisam ver as coisas boas acontecendo com eles todos os dias, precisam se saber parte de uma sociedade justa e livre, na qual terão a chance de construir em pé de igualdade. Há uma cena no filme “o senhor das moscas” que me parece bem paradigmática das coisas que vivemos como seres humanos. O garoto “rebelde” está sendo caçado pelo grupo, o chefete quer a sua morte. Ele corre pela selva e se depara com um incêndio. Está acuado, sem saída. Então, dois dos garotos, que foram cooptados pelo líder ditador, o vêem sob uma árvore, quase sendo tocado pelo fogo. Eles estacam, atônitos. O chefe grita: “estão vendo algo?” E eles, olhando fixo nos olhos do menino, respondem, depois de um longo silêncio: “não”. É quando o garoto consegue fugir em direção à praia. Por um minuto, o sentimento de solidariedade e o desejo da liberdade se fazem parceiros. É a otimista mensagem do autor que, apesar de destacar o tempo todo a vileza e a capacidade de destruição que existe no humano, mostra que é possível, num átimo, tudo se transformar. E, claro, isso não se dá por magia, mas por uma profunda compreensão sobre o que, afinal, está em jogo.
No filme, os garotos entendem que algo está errado e procuram fazer algo para mudar. E nós, aqui, agora? Haveremos de continuar rendendo cultos ao senhor das moscas?
Imagem: boperj.org