Livro de Eduardo Jardim enfatiza a derrota do projeto cultural do escritor
por Maurício Meireles
Você já ouviu falar muito dele. Mário de Andrade (1893-1945), afinal, foi por décadas uma figura central da cultura brasileira – e seu nome ecoa até hoje. Teses foram escritas sobre ele. Suas cartas são publicadas há 20 anos. Seus textos são estudados nas escolas. O papa do modernismo, cuja morte completa 70 anos na próxima quarta-feira – fazendo com que sua obra entre em domínio público em 1º de janeiro de 2016 -, será homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, que acontece em julho, e em uma série de lançamentos.
Assim, parece o criador de um projeto de arte e de um Brasil vitoriosos – mas não é bem assim.
Pelo menos não é essa avaliação de “Eu sou trezentos – Mário de Andrade: vida e obra” (Edições de Janeiro/Biblioteca Nacional), de Eduardo Jardim, primeira biografia de um homem visto por muito tempo como “imbiografável” (por medo de que a abordagem sobre a sexualidade do pensador pudesse gerar processos judiciais). O livro carrega uma visão mais pessimista que o usual. O Mário de Andrade retratado por Eduardo Jardim não é um vencedor, mas um homem que dedicou sua existência a um projeto artístico e de nação – para vê-lo derrotado no fim da vida.
– Não à toa, ele vai ficando mais amargurado. O Mário morreu com 51 anos. Você pega as fotos dele e vê uma pessoa arrasada, um homem velho – afirma Jardim, professor aposentado do Departamento de Letras da PUC-Rio. – Os admiradores de Mário o apresentaram como um escritor consagrado, mas ele foi sacrificado pelo ponto de vista autoritário.
Os últimos anos do modernista, sobre os quais Jardim já havia se debruçado em “Mário de Andrade – A morte do poeta” (Civilização Brasileira, 2005), têm importância crucial nessa tese. Depois de ser demitido do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, com o Estado Novo, Mário entra em um período de depressão. Enquanto esteve à frente do órgão, viu-se perto de concretizar seu credo modernista de uma arte social que servisse a interesses coletivos do país. A reforma proposta por ele visava criar canais entre cultura erudita e popular, nacional e estrangeira, fundar uma arte para estabelecer vínculos comunitários.
Com a demissão – acompanhada de acusações de corrupção -, Mário muda-se para o Rio, onde entrega-se à bebida e fica afastado de amigos queridos que moravam na cidade, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Nomeado por Gustavo Capanema, passa a ocupar cargos menores no Ministério da Educação e Cultura – incompatíveis com quem já tivera uma centralidade na vida cultural do país. Mesmo assim, ele ajudou a fundar as bases do que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E sua visão de conservação do patrimônio cultural é usada até hoje.
– O Capanema quebra o Mário de Andrade. Bota ele no Rio como um zé ninguém, um funcionário que tinha que bater ponto. Você imagina um intelectual da estatura dele batendo ponto? No meio do Estado Novo, ele tinha um projeto antiautoritário, de inclusão – afirma Jardim.
Um dos momentos simbólicos de seu sentimento de derrota é uma conferência em 1942, na qual Mário se mostra melancólico. Aproximando-se de Murilo Miranda, Lúcio Rangel e Carlos Lacerda – à época comunistas -, ele adere à ideia de uma arte de combate. E começa a cobrar de amigos um posicionamento na luta política. Chega a defender que é preciso abdicar da arte para combater o fascismo. Mas Eduardo Jardim não é pessimista.
– O modernismo é o movimento intelectual mais importante do Brasil. Chamar a atenção para seu projeto frustrado convida a avaliar sua importância. Sim, nosso horizonte histórico é muito diferente. A distância possibilita a compreensão – afirma o autor.
Suporta homossexualidade intimidava candidatos a biógrafo
A suposta homossexualidade de Mário de Andrade sempre intimidou candidatos a biógrafo. Os amigos do escritor jogaram um véu sobre o tema – e, mesmo quando Manuel Bandeira publicou sua correspondência com o amigo, muita coisa foi rasurada. Moacir Werneck de Castro foi o primeiro a falar do assunto, em 1989, no livro “Mário de Andrade – Exílio no Rio”, não sem causar polêmica.
Eduardo Jardim não se esquivou da questão, mas não cita casos amorosos do modernista. E mostra que definir o autor de “Macunaíma” (1928) como gay não serve para rotulá-lo. A vivência do erotismo marca vários de seus contos e poemas, afinal.
– A obra dele é marcada pela sexualidade num sentido mais amplo que isso, com uma dimensão instintiva e sensual. Ele dizia que ficava movido sensualmente por uma árvore, uma coisa de grande sensibilidade. E isso surgia acompanhado de uma censura muito forte. Mário vivia sua sexualidade de uma forma muito tensa. No conto “Frederico Paciência” isso aparece de forma muito clara – diz Jardim, que mostrou o livro antes de ser publicado a Carlos Augusto de Andrade Camargo, herdeiro do modernista, e afirma que não recebeu nenhuma sugestão de mudança.
Até hoje, a Fundação Casa de Rui Barbosa guarda uma carta de Mário para Bandeira, que foi lacrada quando o acervo do amigo do modernista foi doado à instituição. Especula-se que ela conteria alguma informação sobre a sexualidade de Mário. O segredo é tanto que há mesmo quem negue a existência da carta – mas ela existe.
Os conflitos de sua vida sexual são só uma parte das tensões que marcam a obra do modernista – e a tornam interessante, diz o biógrafo. Seu pensamento estético funda-se numa oposição entre o lirismo e a inteligência; entre o elemento nacionalista e o universal; a cultura letrada e a popular; o instinto e a razão; e, no fim da vida, entre o artista e seu compromisso político.
– Quando essa tensão se quebra, é o momento de crise na vida dele – afirma Jardim.
O pesquisador, que fez entrevistas e voltou à ampla correspondência de Mário, garimpou duas frases que mostram uma veia antissemita. Em uma delas, comentando os retratos que Portinari e Lasar Segall haviam pintado dele, o autor diz: “Como bom russo complexo e bom judeu místico ele (Segall) pegou o que havia de perverso em mim. (…) A parte do Diabo. Ao passo que Portinari só conheceu a parte do Anjo”.
Embora tenha morrido frustrado, Mário de Andrade foi o intelectual brasileiro mais importante do século XX, na visão de Jardim. Ele defende, porém, que ainda não foi feita uma avaliação crítica do modernismo.
– Acho que toda tentativa de fazer “reviver” o modernismo é bastante equivocada. Temos que medir a distância que nos separa. Ele continua sendo a mais importante referência na nossa história intelectual, mas devemos avaliá-lo criticamente – conclui Jardim.
Fonte: Geledés