No limite da escatologia nuclear e ambiental: Estado suicidário e biopolítica neoliberal

O “Estado Suicidário” é um conceito que alude ao Estado irresponsável em face do iminente acidente atômico e climático.

Por Ronaldo Queiroz de Morais, Sul21.

Se vivêssemos no espaço-tempo de uma cartografia ambiental e socioeconômica do possível o título do artigo, certamente, comporia outra paisagem retórica, a de “uma ecologia política do comum”, na qual as cores do quadro crítico seriam de múltiplas possibilidades de tons, mas a realidade, infelizmente, é outra e adversa à humanidade e aos ecossistemas da Terra. No limite do escatológico, de esbatimento das relações políticas e de desgaste dos sistemas democráticos contemporâneos é que opero o conceito de “Estado Suicidário” concebido por Paul Virilio e ainda pouco explorado. Conceito que alude ao Estado irresponsável em face do iminente acidente atômico e climático. Acontecimentos como a pressão político-militar da OTAN sobre a Rússia, Estado-nação com proeminente poder nuclear-dissuasório, e a insistente busca de colisão beligerante dos EUA contra a China, outra potência que guarda volume expressivo de ogivas nucleares, assinalam a política internacional do pior, porque absolutamente suicidária. Dado que a insana guerra-quente entre potências nucleares é o armagedom. Adiciona-se ainda a completa impotência política de alteração do modo de destruição ambiental diante de eventos climáticos extremos, a ponto de compor o quadro de duplo risco à existência planetária conduzido pelo Estado Suicidário.

Efetivamente, o Estado Suicidário pode ser compreendido a partir do conteúdo macabro posto no “telegrama 71”, em que Adolf Hitler, na iminência da absoluta derrota militar, afirma: “se a guerra estiver perdida, que a nação pereça”. Aforismo representativo da proposição suicidária do Estado Totalitário Alemão, em que a destruição total do povo parte do próprio Estado Moderno. Dito melhor, o aparato burocrático extravia as promessas modernas de emancipação com o intuito de mergulhar – como um suicida – no mar da destruição total. Em essência, o Estado Suicidário é um espaço militarizado, onde a razão instrumental tende a justificar o injustificável. Ele traduz uma época de profunda endocolonização, ou seja, quando a máquina de guerra inflexiona na direção da própria nação. Se o capitalismo, essencialmente, é a transformação das forças vivas em trabalho morto, igualmente é o da passagem do modo de produção ao modo de completa destruição e da morte planetária. A espetacular produção de riqueza industrial, assinalada por Marx e Engels no Manifesto Comunista, hoje sabemos bem, causa enorme custo social e ambiental. Ela encanta e destrói. Tão rapidamente como a máquina de guerra nazista. O niilismo fascista é o laboratório moderno de mutação da cultura política contemporânea e de formação do Estado Suicidário. Ele funciona obscenamente como no aforismo atribuído a Hitler ou na placidez do discurso publicitário centrado na absoluta adaptação do corpo e do espaço ao caos societal e ambiental.

A partir dos anos 1970, o neoliberalismo transporta-se da teoria político-econômica ao Estado Neoliberal, de acelerada flexibilização e desregulamentação das estruturais jurídico-políticas de bem-estar social. É Estado máximo para assegurar o fluxo de capital globalizado, e absolutamente mínimo para assegurar o bem-estar social e o interesse comum. É Estado privatizante, que atua com força em prol de interesse privado dos super-ricos. O neoliberalismo é o dispositivo ideológico do Estado Suicidário, porque desdobra a “destruição criativa” do capitalismo ao limite escatológico. São Estados impulsionados de resignação entusiasta em prol do mercado global. Eles renunciam à responsabilidade política e social diante do duplo acidente fatal, em benefício do mercado financeiro internacional. Objetivamente, sob a ideologia neoliberal impera a destruição dos laços de segurança social e ambiental nas quatro últimas décadas. É a razão moderna utilizada como instrumento com a pretensão de acumular, independentemente das baixas humanas e ambientais. O capitalismo em seu estágio superior é neoliberal e suicidário.

A biopolítica, na trilha conceitual de Michel Foucault, refere-se a um conjunto de processos de controle da vida social, no qual o homem foi o primeiro objeto de controle e de exercício da biopolítica estatal, mas ao longo dos séculos, ela se expandiu para todos os seres vivos e o ambiente físico. A biopolítica versa sobre o controle de população, em amplo campo biológico, a partir do exercício político-científico. O biopoder existe porque exerce controle político sobre os meios necessários à produção de riqueza e capital. Dessa forma, tanto a crescente regulação estatal do passado quanto a desregulação do tempo presente representam, nas margens do biopoder, o mesmo objetivo comum, quer dizer, o de ampliar a produção capitalista com a transformação das forças vivas em matéria morta e riqueza abstrata. Nessa contextura de crescente “estatização do biológico”, do homem e da natureza, com a introdução do biopoder sobre o território, o acidente nuclear e a catástrofe ambiental correspondem ao desdobramento do exercício político do “fazer viver” e “deixar morrer” do Estado, ou seja, não resultam de forças imprevisíveis e incontroláveis da política e da natureza. O escatológico que se transferiu do céu à terra tem um senhor como demiurgo. Ele é o Estado Moderno, que carrega o direito biopolítico de fazer viver e deixar morrer. É impossível descolar o avanço do modo de produção capitalista no Planeta Terra da máquina burocrática estatal moderna, o mesmo vale para os efeitos destrutivos do capital sobre a sociedade e a natureza. Logo, há uma biopolítica no limite do escatológico que precisa ser contabilizada para que possamos compreender a progressão do “deixar morrer” como política do Estado Suicidário.

Instrutivamente, os fatos configuram a conexão de duplo acidente fatal: nuclear e ambiental. Estamos perante a soma de potencial destruidor. São vinte dezenas de milhares de ogivas nucleares com capacidade destrutiva 200 mil vezes maior do que as bombas utilizadas no Japão na Segunda Guerra Mundial, em contexto perigoso de esquentamento beligerante das potências internacionais. Ao lado do aumento da temperatura média do planeta e do incremento dos fenômenos climáticos extremos, a escatologia marcha, com passo de ganso, da fé ao diagnóstico cartesiano da ciência moderna. São fatos de mesmo potencial ofensivo. Ao ponto de haver eloquente equivalência destrutiva na emissão de calor. Nosso clima tem acumulado uma quantidade de calor equivalente à explosão de quatro bombas de Hiroshima por segundo. É situação-limite, tempo escatológico no qual a destruição promete chegar até o último homem. Ele consigna o esbatimento político, isto é, quando o pensamento utópico e emancipatório é atropelado por outro, de extrema direita concentrado de força niilista com a intenção de realizar na Terra o pesadelo distópico. As ideias bizarras e perigosas da extrema direita estão obtendo êxito eleitoral e alterando a geopolítica, incrementando, assim, o risco nuclear e ambiental.

O colapso do Estado do Bem-estar nos anos 1970 acompanha o de desastre ambiental. Melhor dizendo, a promessa de capitalismo social e de desenvolvimento sustentável malogrou, emblematicamente, com a proliferação de Estado Neoliberal de mal-estar social e de eventos climáticos extremos. Mesmo com o despejo publicitário de toneladas de cosmético ideológico, a feiura do capital é insofismável. O capitalismo é a tal “destruição criativa ” que encanta e destrói, profundamente, o social e a biosfera. O modo de produção dominante é agora, amplamente, o paradigma de destruição militar. Ele é antes destruição do que criação. O cenário é de guerra, basta olhar e ver o território após cada acidente climático. O duplo acidente fatal inscreve identidade como frutos de uma mesma árvore: a modernidade capitalista. Com o fim do holoceno, adentramos rapidamente em um novo período de forte instabilidade militar e ambiental. O antropoceno nomeia a era em que a ação humana, digo melhor, a industrialização total do planeta tem tornado imprevisível o prolongamento da existência planetária. Trata-se de uma era da modernidade capitalista que consigna potência apocalíptica com força material capaz de desfazer o mundo criado por Deus em sete dias.

Para a antropóloga Anna Tsing, o antropoceno é uma era de perturbação humana. Ela é de obscena destruição em massa. Também, é a de “diversidade contaminada”, na qual emergem detritos da destruição ambiental, da conquista imperial, do impulso lucrativo, do racismo e da normalização autoritária. Não é tudo. Além do mal, há o devir criativo da existência colaborativa. Isto é, uma dobra do possível disponível para uma terra habitável. À beira da falésia, quando o elástico está prestes a se romper completamente, ainda há como emergir novas possibilidades de existência. O antropoceno é o tempo da absoluta perturbação humana – ambiental, de classe, de raça e de gênero – no qual o escatológico é incontornável. Depois de volume expressivo de utopias imaginadas na modernidade estamos sob grilhões distópicos de uma pós-modernidade neoliberal que nos oferece a adaptação docilizante como solução cínica e suicidária. Mas o tempo dramático, igualmente, pode traçar outro horizonte possível de sobrevivência existencial a partir da diversidade contaminada e da completa superação da lógica perversa do capital. O horizonte do possível passa pela ação política, dizendo concisamente, pela destruição do Estado Suicidário, galga encontrar um presente de múltiplas possibilidades existenciais e futuro distante da barbárie. Em suma, consiste em travar guerra política contra os feiticeiros da destruição e aprender, concretamente, a reinventar modos de produção e de cooperação que escapem às evidências nocivas do crescimento e da competição capitalista. É premente, depois da completa endocolonização dos corpos e dos territórios no antropoceno, a descolonização da imaginação política a fim de restabelecer o ambiental como território do comum e libertar o homem das correntes pesadas do terror escatológico.

 Ronaldo Queiroz de Morais é Doutor em História Social na Universidade de São Paulo – USP.

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