Era o começo de dezembro de 1976. Na pequena cidade onde vivíamos não se falava em outra coisa. Jango estava morto. A notícia se espalhou como um rastilho de pólvora, afinal, São Borja era sua terra-mãe. Em casa, o clima era de profunda tristeza. Nossa vida inteira tinha sido marcada pela presença de João Goulart. Meu pai trabalhava para ele na emissora ZYF-2 Fronteira do Sul desde os anos 60, quando Jango já era o dono da rádio. Com essa marca, de ser uma rádio do Jango, a emissora atravessou os anos de chumbo, sempre vigiada e com os censores à porta.
Quando veio o golpe e Jango se exilou no Uruguai, ele distribuiu as ações entre os funcionários e a rádio funcionava como uma cooperativa, algo realmente inusitado naqueles dias de ditadura militar. O faturamento era dividido entre eles. O pai tinha o cargo de gerente e, por incrível que possa parecer, a rádio seguiu transmitindo, ainda que vigiada. Quando o governo de Garrastazu Médici já chegava ao final, em 1973, as coisas ficaram mais difíceis. A rádio começou a ter problemas. Os trabalhadores não conseguiam provar que as ações tinham sido passadas pelo Jango, e a fiscalização não deu trégua. O pai chegou a ir até o Uruguai junto com outro diretor da rádio para ver com Jango como regularizar tudo, mas não conseguiram.
Finalmente, em 1975, já no governo de Ernesto Geisel, num belo dia, o representante do Dentel na cidade foi até o transmissor e cortou o cabo da antena. A rádio estava fechada, com o transmissor lacrado, sem nenhuma explicação. Era o fim da generosa proposta de uma emissora de rádio cooperativada. Aquilo tudo foi um baque na vida da família. Sem emprego e ainda com a marca de ser um dos caras do Jango, a saída do pai foi montar um pequeno negócio junto com outro diretor da rádio. Uma tabacaria, bem em frente à praça. Não deu certo, mas isso já é outra história.
Um ano depois do fechamento da rádio Jango estava morto e hoje é possível fazer as ligações sobre como a ditadura estava no pé do ex-presidente. Por isso não duvido de que tenha sido mesmo assassinado.
Naquele triste dezembro de sua morte, surpreendentemente, a família foi autorizada a trazer o corpo para ser enterrado em São Borja, embora houvesse ordens expressas para ser um enterro discreto, sem aglomerações. Mas, esse foi um “milagre” que a ditadura não conseguiu realizar. A cidade fervia. Todos se preparavam para receber Jango. Ele teria as honras do povo. Lá em casa, preparávamos nossa melhor roupa. Iríamos ver o presidente, chefe do nosso pai, desse o que desse. O exército montou uma operação de guerra para impedir que houvesse qualquer manifestação. Já na ponte entre Libres (Argentina) e Uruguaiana o carro com o caixão foi parado com a ordem expressa de que seguisse até São Borja em alta velocidade, para que as gentes não pudessem saudá-lo. Ainda assim, se soube de centenas de pessoas à beira da estrada, despedindo-se do presidente.
O combinado com o chofer era de que seguisse imediatamente para o cemitério. Mas, sabe-se lá como, o carro foi direto para a Igreja Matriz, onde as pessoas já se aglomeravam aos milhares. Nós estávamos lá, eu e meu irmão, agarrados à mão do pai. São Borja nunca vira uma manifestação como aquela. Eram mais de 10 mil pessoas rodeando a igreja. Depois dos ofícios, os milicos ainda tentaram sair com o caixão para levar, de carro, até o cemitério. O povo não deixou. O caixão foi arrancado das mãos dos milicos e levados pelos são-borjenses, em caminhada, até a morada final. Devia ter mais de 30 mil pessoas nas ruas.
Eu tinha 15 anos, mas já estava familiarizada com a luta contra a ditadura. Lá em casa, sempre falamos e soubemos de tudo. E politicamente estávamos ligados ao então MDB. Mas, aquele enterro foi uma espécie de batismo na luta aberta, na ação de massa. Porque na clandestinidade já atuava, distribuindo panfletos do MDB, durante as noites, denunciando a ditadura. Só que naquele dia, no meio da multidão, devo ter entendido que quando estamos juntos, os nossos desejos não podem ser detidos. Nada do que o exército planejara aconteceu. Tudo saiu do script, pelas mãos do povo, e Jango atravessou a cidade nos braços dos seus. Aquilo foi bonito demais, e, hoje, recordando cada minuto daquele dia com a ajuda das memórias do meu irmão, percebo que foi também um divisor de águas para mim.
Quem conhece a fronteira sabe o quanto um dezembro pode ser calorento. Pois aquele dia foi assim. E durante o dia todo foi uma louca romaria, com os homens em mangas de camisa, suando em bicas, e as mulheres arrumadas para domingo, de salto alto e lágrimas no rosto. Eram quase cinco da tarde quando Jango finalmente desceu à sepultura. O cemitério cheio, gente por cima dos túmulos, todos dispostos a não arredar pé até o último instante de adeus.
Eu, meu pai e meu irmão, então com 10 anos, éramos um pingo na multidão. E fizemos todo o trajeto, rendendo as homenagens, como toda a gente. A manifestação, rebelde, popular e massiva, e a quebra de todas as regras impostas pelos milicos ficaram marcadas em mim como um sinal. Era preciso enfrentar o que fosse para que nossa gente enterrasse a ditadura militar. E aquela despedida missioneira, dramática, cadente e sofrida, se fixou nas retinas, para sempre. Dois anos depois, já em Minas, integrei-me visceralmente à luta pela anistia e nunca mais deixei estar no movimento popular.
De todas as formas, a vida e o governo de João Goulart, o Jango, bem como sua morte, marcaram minha/nossa vida para sempre. E eu o tenho guardado dentro do coração.
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[avatar user=”Elaine Tavares” size=”thumbnail” align=”left” link=”attachment” target=”_blank” /]Elaine Tavares é jornalista.