Por André Barrocal.
Requião comanda a Frente, a contar com 200 deputados e 18 senadores. Empreitada difícil contra a casa-grande
Os rumos privatizantes, financistas e globalizantes do Brasil ainda podem ser revertidos no governo do impopular Michel Temer? Podem ser desbancados por um projeto político nacionalista, mais ligado à indústria e ao mercado interno, na sucessão de 2018?
O nascimento, em Brasília, de uma Frente Parlamentar em Defesa da Soberania Nacional mostra que há quem acredite ser possível refazer a rota. Desafios não faltam, no entanto.
A política é dominada pelos ricos e estes não têm motivos para se queixar de rumos. Boa parte da indústria tornou-se rentista, faz a festa no mundo das finanças sem fronteiras e arrancou de Temer uma reforma trabalhista barateadora do brasileiro.
No Judiciário, sobram corporativismo, patrimonialismo e politicagem, outros entraves ao debate sobre o futuro do País, conforme admitiu um togado em público. Em suma, a depender da chamada elite, aquela que dá as cartas nos negócios e na política, fica tudo como está, para tristeza dos 207 milhões de conterrâneos, renda per capita de 1,2 mil reais mensais.
A Frente da Soberania, reunião de congressistas de partidos variados, começou a correr o País na segunda-feira 28, com um ato em Minas Gerais. Na Assembleia Legislativa local foi inaugurada uma sala batizada sugestivamente de José Alencar, o industrial mineiro vice do ex-presidente Lula por oito anos, morto em 2011.
Seu filho, Josué Gomes da Silva, comandante da empresa Coteminas, apareceu por lá. No PT, há quem o defenda para vice na chapa presidencial do partido. A Frente pretende fazer, em setembro, atividades no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Nordeste.
Encontros com empresários, acadêmicos, sindicalistas, estudantes e igrejas, para tentar atrair descontentes com as privatizações e a política econômica, esta enfraquecedora do arsenal estatal e a depositar todas as fichas em que o capital privado, quando deixado livre para seguir os instintos, faz bem a um país.
Com 200 dos 513 deputados e 18 dos 81 senadores, a Frente é comandada pelo senador Roberto Requião, do Paraná, um peemedebista histórico ameaçado de ser expulso do partido por suas críticas ao radicalismo neoliberal de Temer e do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles.
O secretário-geral é o deputado Patrus Ananias, petista mineiro que nutre esperanças, mas não ilusões diante dos desafios. “Há uma parcela dos empresários com um sentimento nacionalista, mas é forçoso reconhecer que a maioria não tem”, diz.
“Para uma parcela ponderável da elite brasileira, nós somos gente inferior, bom é o que vem de fora.” Uma postura, comenta, com raízes históricas, mas agravada nos últimos tempos, graças aos superpoderes do “mercado”, dentro das fronteiras e fora delas.
O sistema financeiro esbalda-se com empréstimos a governos e movimentação de grana de um lugar a outro do planeta. No Brasil, a financeirização do PIB chegou cedo e arrasou a indústria, conforme o relatório anual 2016 da Unctad, a agência da ONU para comércio e desenvolvimento. Seus efeitos não são nada bons para a população em geral.
Há concentração de renda e alta do desemprego, diz a Unctad, baseada no visto em países ricos financeirizados há mais tempo. Mas enchem o bolso dos endinheirados e estes são os que mandam no Brasil, conforme descrição do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, 83 anos, no dia do lançamento da Frente da Soberania, em junho.
“A classe liberal dirigente do Brasil é formada por rentistas, que vivem de aluguéis, juros e dividendos, e os financistas, que administram a riqueza dos rentistas.”
O predomínio da riqueza na política é constatável pelas fortunas pessoais. O patrimônio médio de cada um dos 513 deputados federais era de 2,5 milhões de reais na eleição de 2014. O dos 27 senadores vitoriosos naquela campanha, de 17 milhões.
No caso do Senado, um dos eleitos era (e é) tão abastado, o presidente interino do PSDB, Tasso Jereissati, do Ceará, que fez quintuplicar a média geral. Excluída sua fortuna de 389 milhões, ainda assim os senadores triunfantes em 2014 tinham 3,3 milhões em bens cada um, em média.
Nos estados, a mesma coisa. Os 1.059 deputados estaduais eleitos em 2014 tinham 1,4 milhão de reais, em média. Os 27 governadores, 3 milhões. Os 5,5 mil prefeitos vitoriosos na campanha de 2016, 1,1 milhão.
Esse retrato patrimonial é obra do economista André Calixtre, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para obtê-lo, usou as declarações de bens entregues pelos candidatos à Justiça nas campanhas de 2014 e 2016.
“Os ricos têm acesso quase exclusivo ao sistema político e burocrático que sustenta as decisões do Estado”, diz. “O poder econômico diminui sensivelmente as chances de um cidadão de origem popular ascender ao sistema representativo. A classe trabalhadora é massivamente excluída.”
Culpa, comenta, da “mercantilização das eleições”, viciadas em doações empresariais. Quem ganha eleição no Brasil não apenas é rico, como é quem consegue arrecadar grandes somas para sua campanha, mostra o mesmo levantamento do economista.
Essas doações estão proibidas em 2018, mas, em meio à correria do Congresso para aprovar as regras da eleição, há gente doida para ressuscitar a ideia, casos de Temer, do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, e até o seu vice no TSE, Luiz Fux. Um espanto, a posição de Fux. Foi ele o autor do vitorioso relatório do Supremo Tribunal Federal, em 2015, que extinguiu o financiamento empresarial.
Com Temer no exterior no início de setembro, os debates sobre a reforma política aconteceram em uma Câmara dos Deputados ilustrativa do Brasil atual. Quem comandou sessões recentes, na qualidade de maior autoridade na Casa, foi um jovem de 28 anos eleito no Maranhão, em 2014, com 56 mil votos pelo Partido Ecológico da Nação, o PEN.
Até aqui, o grande feito de André Fufuca em seu primeiro mandato foi integrar a tropa de choque de Eduardo Cunha contra a cassação dele. Consta que, certa vez, Cunha comentou com um colega deputado que estava frustrado em Brasília: “Você está assim porque quer fazer política, eu quero fazer negócios”.
“Negócio” ajuda a entender a força dos planos neoliberais de Temer. A anunciada venda da Eletrobras é um bom caso de comunhão de bens entre poder político e poder econômico. O modelo privatizador pode fazer a conta de luz brasileira, uma das mais altas do mundo, subir até 16%, conforme a Agência Nacional de Energia Elétrica. Sem a presença estatal no setor, haverá risco de novo apagão, como aquele de 2001 na era neoliberal de Fernando Henrique Cardoso.
Mas, se o cidadão tem motivo para arrepiar-se, alguns endinheirados, próximos dos políticos certos, têm muito a sorrir.
O anúncio da privatização fez disparar o valor das ações da estatal, para delírio de acionistas minoritários, como o fundo 3G Radar e o Banco Clássico. O fundo tem como sócios, de maneira indireta, Jorge Paulo Lemann, o mais rico do Brasil, Carlos Alberto Sicupira, o Beto Sicupira, e Marcel Telles.
O trio comanda a AmBev, é chegado ao PSDB e em apenas dois dias ganhou 49 milhões de reais com o anúncio da privatização, segundo o Valor. O site “vemprarua.org.br”, de um movimento direitista que ajudou o tucanato e os cunhistas a derrubarem Dilma Rousseff, já esteve em nome da Fundação Estudar, que é da AmBev.
Um dos dirigentes da Fundação, Fabio Tran, era líder do Vem Pra Rua e só a deixou quando o vínculo com o “Fora Dilma” veio a público, em março de 2015. Sicupira reunia-se com senadores tucanos para ajudar a conspirar contra Dilma.
Passado o impeachment, a completar um ano na quinta-feira 31, o fundo 3G botou na praça cálculos sobre bilionários prejuízos da Eletrobras em 15 anos, um bom argumento para os privatistas.
O dono do Banco Clássico é outro que engordou após o anúncio da privatização. João José Abdalla Filho, o Juca Abdalla, ganhou 600 milhões de reais em dois dias, conforme o Valor. Filho de família rica, encorpou a fortuna em dois governos do PSDB em São Paulo, os de Geraldo Alckmin e José Serra, ao receber vultosas indenizações por um terreno desapropriado.
O caso foi parar na Justiça, com uma ação popular a acusar as gestões de Alckmin e Serra de pagar 700 milhões indevidamente a Abdalla entre 2004 e 2009, mas acabou arquivado. O empresário também tem ligações com o PMDB.
Em 2006, concorreu a uma vaga de suplente de senador na chapa da atual prefeita de Boa Vista (RR), Teresa Surita, mulher de Romero Jucá, o que quer expulsar Requião do partido. No Conselho de Administração da Eletrobras, aliou-se, em 2016, a outro acionista minoritário, Lirio Parisotto, para emplacar um executivo do Banco Clássico no colegiado. Parisotto é suplente do senador Eduardo Braga, do PMDB do Amazonas.
A Eletrobras é uma das estrelas do pacote privatista que Temer acaba de levar à China, onde fez visita oficial e participou de reunião dos líderes dos BRICS. Com o governo nas mãos do Congresso em votações importantes para a área econômica, Henrique Meirelles não foi a terras orientais. Uma pena para o ministro que sonha ser presidente. Quem parece ditar a atual política externa é ele.
Enquanto o chanceler Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB, se dedica a botar lenha na fogueira da crise na Venezuela, a Fazenda comanda um lance vistoso, alinhado com o projeto financista e globalizante do governo.
A pedido da Fazenda, a OCDE, clube de 35 nações ricas ou simpatizantes, examinará, a partir deste mês, o pedido do Brasil de entrar de sócio. O pedido começou a ser desenhado pelo Ministério da Fazenda na época de Joaquim Levy e foi formalizado, em maio, pelo time de Meirelles.
Para entrar, decisão que pode levar uns quatro anos, o País terá de aceitar condições limitadoras de políticas públicas. A OCDE detesta subsídios, por exemplo.
Sem legitimidade internacional, devido à forma como nasceu, comenta um diplomata, o governo adota uma espécie de “política externa da selfie”, mais preocupado em posar para fotos em suposta boa companhia do que em defender interesses e posições históricas do Brasil. O namoro com a OCDE se encaixaria aí.
A política externa apanha no próprio governo. A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência vê uma penca de defeitos e os apontou no documento “Um país em busca de uma grande estratégia”, divulgado sem alarde em maio.
Cita erros de Dilma, faz críticas incríveis à diplomacia da era Lula, quando o Brasil tinha o melhor chanceler do mundo na visão de uma importante revista americana, e desce a lenha no Itamaraty. “Todo país que se proponha a assumir um papel global ou exercer liderança em sua região precisa de um projeto estratégico de Estado”, diz. “O Brasil, até aqui, carece de um projeto integrado nesse sentido, em particular em política exterior.”
A indiferença com um projeto de Brasil também viceja no Judiciário, um poder chegado a corporativismo e politicagens. Ao assumir uma vaga no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, em 25 de agosto, um desembargador federal, Fabio Prieto de Souza, botou o dedo em feridas.
Para ele, as maiores crises brasileiras são de liderança e de projetos. Superar “a estagnação econômica e a desigualdade social” exige “cidadãos dispostos a correr o risco de conduzir, de liderar, de lançar ideias e projetos”, porém, o debate público está “envenenado pela discórdia pessoal”.
A Justiça que ele integra teria sua cota de responsabilidade, ao ter se tornado um reduto de “patrimonialismo”, “clientelismo”, “desperdício de dinheiro público” e “preguiça premiada”, graças a uma bem-intencionada reforma do Judiciário feita em 2004.
A reforma, disse, provocou a “sindicalização da magistratura”, um “sindicalismo de toga”, “barulhento”. Gente interessada em grana e benesses, em suma. “Há juízes que não fazem uma sentença há cinco, dez anos. Vivem de sinecura em sinecura.”
Prieto fez ainda outro comentário interessante. “Juízes e militares não podem participar do jogo democrático”, são “instituições garantidoras de última instância do próprio sistema democrático”. Não detalhou o que quis dizer, mas, diante do visto desde o início da Operação Lava Jato e na ação do juiz Gilmar Mendes, dá para imaginar.
A propósito, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, anda preocupado com a falta de um projeto político nacionalista e não mediu palavras durante um debate no Senado em junho.
“Perdemos o sentido de projeto nacional e perdemos a ideologia de desenvolvimento.
“O País está sem rumo. Essa circunstância é perigosa para um país da estatura do Brasil, porque, se fôssemos um país pequeno, poderíamos nos agregar a um projeto de desenvolvimento de um outro país, como ocorre, mas o Brasil não pode fazer isso”, disse o general.
Para ele, a ideologia do desenvolvimento foi abatida pela Guerra Fria. Em outras palavras, o golpe militar de 1964. Seu colega general Sérgio Etchegoyen, ministro íntimo de Temer, é uma cabeça impregnada de Guerra Fria. Em uma palestra para aspirantes a diplomata no Itamaraty, em 23 de agosto, brandiu um discurso linha-dura, a mencionar inclusive um “inimigo interno”.
Guerra Fria à parte, é provável que o rumo privatizante e financista levado adiante por Temer componha o figurino do candidato governista na campanha de 2018, em uma aliança direitista a juntar PMDB, PSDB e DEM.Membro da Frente Parlamentar da Soberania, o deputado Celso Pansera, peemedebista do Rio, vê seu partido irremediavelmente à direita e pronto para apresentar-se assim na eleição, um fenômeno capaz de deixar certos industriais dispostos a se afastar do governismo e a se interessar por um projeto nacionalista.
A consolidação do PMDB à direita, diz Pansera, começou com o documento Ponte para o Futuro, a radical agenda neoliberal de Temer, e tem seu capítulo final com a tentativa de Romero Jucá de expulsar Roberto Requião, voz ácida a Henrique Meirelles. “O PMDB abandonou o centro político, que está órfão. Isso permite à esquerda e à centro-esquerda ocuparem um espaço mais ao centro”, afirma.
Um exemplo da fissura entre o empresariado produtivo e o governo de que fala Pansera foi vista na decisão da dupla Temer-Meirelles de acabar com a TJLP, a taxa de juros usada pelo BNDES para fomentar a indústria e a infra-estrutura.
A lei foi aprovada pelos deputados na quarta-feira 30 e pelo Senado em 6 de setembro. Às vésperas da votação na Câmara, um dirigente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) disparava telefonemas para deputados, até da oposição, a fazer lobby contra a lei.
A esperança até então dos defensores da TJLP parecia ser o senador José Serra, do PSDB paulista. Tremendo erro, aliás, a julgar pelas derrotas desenvolvimentistas colecionadas por Serra há 20 anos no governo FHC.
Será que um discurso nacionalista, em defesa das riquezas brasileiras, da indústria e do mercado interno terá apelo na eleição de 2018? “O nacionalismo não avança sozinho, é a ação antinacional que estimula esse valor”, diz o cientista político Roberto Amaral, ex-presidente do PSB e um dos coordenadores da Frente Brasil Popular, reunião de alguns movimentos sociais, como as centrais sindicais.
Para ele, após a Constituição de 1988, o nacionalismo perdeu protagonismo para temas sociais, como a redução da pobreza e a universalização da saúde, mas volta à ordem do dia graças à agenda Temer.
“O bloco progressista terá necessariamente de fazer um discurso nacionalista na eleição. PSDB e DEM não podem fazer.” Tem chances de dar certo? Ele é meio cético. “A direita tem vencido um debate ideológico que a esquerda se recusa a fazer”.
Fonte: Carta Capital