Por Rodrigo Martins.
Em dezembro de 2014, após dois anos e sete meses de investigação, a Comissão Nacional da Verdade confirmou 434 mortes e desaparecimentos forçados durante a ditadura (1964-1985), além de identificar mais de 1,8 mil vítimas de tortura.
Beneficiados pela leniente interpretação da Lei da Anistia conferida pelo Supremo Tribunal Federal, a incluir perseguidos e algozes como beneficiários do indulto, os agentes da repressão jamais foram punidos na esfera criminal.
Antes de 1979, quando a anistia foi concedida, as volumosas denúncias de violações aos direitos humanos cometidas por praças e oficiais das Forças Armadas foram acobertadas pela Justiça Militar. A despeito do perigoso precedente, os militares não terão mais de enfrentar os tribunais de júri popular caso pratiquem crimes contra civis.
Michel Temer sancionou o projeto de lei que transfere para cortes militares o julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por integrantes das Forças Armadas nas missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando são convocados a assumir papel de polícia e reforçar a segurança pública.
Aprovada pelo Senado na semana anterior, a medida entrou em vigor na segunda-feira 16, após ser publicada no Diário Oficial da União, sob críticas de entidades de direitos humanos e diversos organismos internacionais. Desde 1996, uma lei garantia que os homicídios de civis, mesmo aqueles ocorridos em operações militares, seriam investigados e processados pela Justiça comum.
Em pouco mais de um ano, as Forças Armadas foram chamadas a intervir em três estados. Militares foram destacados para combater facções criminosas no Rio Grande do Norte, deter a onda de violência no Espírito Santo após uma greve da Polícia Militar e reforçar o patrulhamento do Rio de Janeiro durante as Olimpíadas, as eleições municipais e a votação do pacote de austeridade aprovado pela Assembleia Legislativa.
Desde julho, auxiliam no combate ao narcotráfico, mesmo sem existir qualquer evidência de redução da violência nas favelas ocupadas pelos militares, a exemplo da Rocinha. “Quando chegamos, havia uma guerra e hoje não existe mais isso. Existe tiroteio, mas, infelizmente, faz parte da história da comunidade”, minimizou o ministro da Defesa, Raul Jungmann, na terça-feira 17.
Há tempos as tropas se queixam da “insegurança jurídica” trazida por essas missões. Em época de paz, as mortes ocorridas nessas operações são investigadas como homicídios. “A jurisdição dos tribunais militares deveria limitar-se aos julgamentos de crimes de caráter exclusivamente militar ou infrações de disciplina. Se um soldado mata um suspeito durante uma operação em uma comunidade, é preciso investigar as circunstâncias dessa morte. Caso não se confirme a tese de legítima defesa, trata-se de um crime comum”, diz Renata Neder, coordenadora de Pesquisas e Políticas Públicas da Anistia Internacional no Brasil. “Ademais, essas cortes não contemplam os princípios de independência e imparcialidade.”
O Superior Tribunal Militar, para citar um exemplo, é composto de 15 ministros, dos quais três oficiais-generais da Aeronáutica, quatro do Exército e três da Marinha. No total, dez ministros são vinculados às Forças Armadas, o que representa dois terços da Corte.
Não por acaso, em nota técnica encaminhada ao Congresso ainda na gestão de Rodrigo Janot, a Procuradoria-Geral da República argumentou que a Justiça Militar não tem independência funcional e, por isso, não teria a isenção necessária para processar e julgar as acusações contra militares.
O Escritório para a América do Sul do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos, uniram-se aos críticos da mudança.
“A ampliação da jurisdição dos tribunais militares representa um grave obstáculo para um julgamento justo e imparcial, fere o princípio da igualdade perante a lei e relativiza as garantias do devido processo legal e também as normas internacionais de direitos humanos”, afirmaram os órgãos, em comunicado conjunto.
As duas entidades observaram ainda que o Estado brasileiro ratificou diversos tratados que garantem a todas as pessoas julgamento por tribunais competentes, independentes e imparciais, tais como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Em ofício remetido à Presidência da República, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) recomendou a rejeição integral do projeto. No texto, a entidade lista uma série de violações praticadas pelos militares no Rio de Janeiro, ao longo das 12 intervenções ocorridas no estado nos últimos dez anos.
Em 2008, soldados do Exército foram responsabilizados pela morte de três jovens do Morro da Providência, entregues a uma facção criminosa rival. Em 2011, oito militares foram acusados da morte de um adolescente no Complexo do Alemão. De 2014 a 2015, quando as Forças Armadas ocuparam por 15 meses o Complexo da Maré, um jovem teve a perna amputada após ser baleado pela tropa. São apenas alguns exemplos.
Michel Temer ignorou os apelos. O único artigo vetado pelo presidente foi o que limitava a medida à operação para garantir a segurança da Olimpíada de 2016. Agora, a transferência de jurisdição torna-se permanente. “É uma irresponsabilidade”, lamenta o advogado Darci Frigo, presidente da CNDH.
“Os integrantes das Forças Armadas nem sequer deveriam estar envolvidos em atividades de segurança pública, pois receberam treinamento para a guerra, para deter ou abater inimigos externos”, observa. “Ao transferir o julgamento de crimes praticados contra civis para os tribunais militares, passa-se uma perigosa sinalização de imunidade às tropas.”
Fonte: Carta Capital.