Por Samuel Lima
“Os fatos são teimosos; sejam quais forem nossos desejos, nossas tendências ou os ditames de nossa paixão, eles não podem alterar os fatos e os dados concretos.” (John Adams)
“Os fatos são estúpidos.” (Ronald Reagan, ex-presidente dos EUA)
Há muito observadores e críticos de mídia têm alertado para o novo papel desempenhado pelas empresas de comunicação, que se convencionou chamar de mídia – e aqui acrescento a singela alcunha de monopolista. Notadamente, a partir das últimas eleições (2014), ao que tudo indica, todos os limites foram ultrapassados nesse fosso que se ergue entre a narrativa da imprensa tradicional (intensamente vocalizada nas redes sociais) e a sociedade. A regra geral é: entre o fato e a verdade, a opção da mídia tem sido por uma das versões dos fatos.
Lanço um breve olhar sobre as capas dos dois maiores jornais impressos do país – Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de S. Paulo (OESP), edições de domingo, 29/3/2015. A Folhaaposta na intriga entre o atual ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e a presidente da República, Dilma Rousseff: “Dilma é genuína mas nem sempre efetiva, diz Levy” – destaca a FSP em sua manchete, assegurando que tem a gravação de palestra realizada pelo ministro em São. Paulo, na qual ele faz “uma crítica direta à presidente”.
O contexto da frase? Bem, isso pouco importa. A verdade vendida pelo jornal é o que interessa: a versão de que existe uma tensão entre Dilma e seu principal ministro da área econômica. Na leitura do texto, assinado pela jornalista Joana Cunha, o editor do caderno “Mercado”, em notória militância contra o governo Dilma, faz pesar sua tinta na interpretação da suposta crítica do ministro Levy: “Acho que há um desejo genuíno da presidente de acertar as coisas, às vezes, não da maneira mais fácil, mas… Não da maneira mais efetiva, mas há um desejo genuíno” (leia a íntegra aqui).
A simples troca de conceitos – Levy falou “efetiva” e o jornal traduziu em sua manchete/título como “efetiva e eficaz” – já mostra a determinação de moldar a realidade à visão política que orienta a FSP, em especial do seu caderno de economia, coincidentemente chamado de “Mercado”. Vence a versão, claro. Às favas os fatos e sua apuração rigorosa, incluindo ouvir o ministro após a palestra proferida em inglês.
Mas é na crítica de Vera Guimarães Martins, ombudsman da FSP, que o jogo político se explicita de maneira mais vertical. O título da coluna já diz muito da crítica: “Diferentemente do informado…” (texto completo aqui). Escreve Vera:
“A manchete do último dia 22 – ‘Dirceu recebia parte de propina paga ao PT, afirmam delatores’ – foi mais do que um desses casos clássicos de exagero. Foi erro, sem sombra de dúvida, gerado desde o título interno da reportagem. A manchete tem alguns problemas, mas os principais cabem num resumo: quem informou não é delator e quem é delator não informou o que está no título. E, claro, se a fonte é uma só, usa-se o singular.” (Fonte cit.)
A Secretaria de Redação, segundo a ombudsman, admite o erro “de enunciado” (o erro crasso é de informação), mas mesmo assim reafirma que o assunto seria “manchete”. Trata-se de um malabarismo ideológico de fazer inveja aos melhores artistas do gênero do afamado Cirque du Soleil. Critica Vera:
“A afirmação de que os pagamentos à consultoria de Dirceu eram descontados das propinas da Petrobras foi feita pelo empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC, que ainda não fechou acordo de delação premiada – o que faz toda a diferença” (Cit.).
Volta e meia, os repórteres pedem um socorro aos homens de marketing do grupo, ou mais precisamente ao diretor-geral do Instituto Datafolha, Mauro Paulino, que gentilmente “desenha” a síntese da narrativa anti-Dilma adotada pela FSP e outras nove empresas que compõem o núcleo hegemônico do monopólio midiático, nacionalmente: “A rejeição maior vem da frustração com a economia, do medo do desemprego e da percepção da inflação fora do controle. Tudo temperado pelos escândalos de corrupção” (Fonte cit.).
Menção nenhuma
O tempero acentuado dos “escândalos de corrupção”, aliás, sumiu das páginas da concorrida edição dominical de ambos. Não há nenhuma vírgula, tanto na Folha quanto noEstadão, que remeta à Operação Zelotes, que investiga alguns dos maiores grupos empresariais brasileiros, suspeitos de terem pago propina para anular multas junto à Receita Federal. Em sua edição de sábado (a menor circulação semanal), o assunto aparecera no Estado de S. Paulo (leia a íntegra aqui).
A reportagem assinada pelos jornalistas Andreza Matais e Fábio Fabrini, dá conta de que “os bancos Bradesco, Santander, Safra, Pactual e Bank Boston, as montadoras Ford e Mitsubishi, além da gigante da alimentação BR Foods são investigados por suspeita de negociar ou pagar propina para apagar débitos com a Receita Federal no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf)”.
Como o diabo sempre mora nos detalhes, some do lide da matéria e só vai aparecer num plano secundário, uma informação altamente relevante, pensando no mundo dos negócios de mídia:
“O grupo de comunicação RBS (afiliada da Rede Globo, que monopoliza 90% da comunicação no RS e SC – grifo meu) é suspeito de pagar R$ 15 milhões para obter redução de débito fiscal de cerca de R$ 150 milhões. No total, as investigações se concentram sobre débitos da RBS que somam R$ 672 milhões, segundo investigadores” (Fonte cit.).
Voltando ao ponto central desta observação, a manchete da edição dominical do Estadãocontinua apostando no espetáculo-mor, pilotado pelo Dr. Moro, envolvendo a Petrobras: “Alvos da Lava Jato respondem por 40% das doações a partidos”. Na linha fina, a novidade: “PT, PMDB e PSDB se beneficiaram de recurso de 21 empresas privadas envolvidas em escândalo”.
Os maiores partidos políticos do país se equivalem no recebimento de doações das empreiteiras, incluindo-se o PSDB, núcleo da oposição política ao governo federal. Na chamada de capa do Estadão, a novidade é expressa sem meias palavras ou sofismas banais: “Mas o cerco ao grupo também ameaça as finanças do maior partido de oposição: 42% das doações privadas recebidas pelo PSDB vieram das empresas investigadas” (leia a reportagem completa).
O mistério das doações ou propinas lavadas ainda persiste. A reportagem cita a visão do Ministério Público Federal afirmando que os “repasses oficiais feitos ao PT eram, na verdade, pagamento em troca de benefícios em contratos firmados com a Petrobrás. Outros partidos, como o PMDB e o PP, teriam se utilizado de canais diferentes para coletar recursos desviados”. E os repasses oficiais ao PSDB, PSB, DEM e demais partidos da oposição? Seriam doações ou propina do esquema de corrupção na Petrobras? A reportagem de Daniel Bramatti e Valmar Hupsel Filho não faz nenhuma menção ao assunto. Fica o não dito pelo dito e segue a vida.
Fluxo contínuo
Nesta edição do Estadão (29/3), destaco mais duas matérias para fechar esta breve observação crítica. A primeira é a reportagem de capa do Caderno “Economia & Negócios” (E&N), com chamada de capa, cujo título da reportagem é “85% do esforço fiscal anunciado até agora sai do bolso dos brasileiros” (acesse o texto integral). A principal fonte é o economista Mansueto Facundo Almeida, que faz as contas do suposto impacto do ajuste fiscal no bolso dos brasileiros – cujos infográficos ocupam mais de 50% da página B1.
Almeida é economista ligado ao PSDB e fez parte da equipe econômica do candidato derrotado à Presidência da República, senador Aécio Neves (PSDB). Tais credenciais, no entanto, são omitidas pela jornalista Alexa Salomão. A repórter não ouviu nenhuma fonte do governo federal ou economistas de outras tendências políticas. Os dados de Mansueto são apresentados como a mais arrematada verdade, fundamentadas por cálculos que levam em conta a visão ideológica do economista sobre o cenário brasileiro: R$ 38 bilhões (dos R$ 45 bi anunciados pelo governo) vão sair do orçamento das famílias. Para o leitor é mera questão de fé!
Na hora de exercitar o pluralismo das fontes, que no Estadão é algo mais vivo que em seu concorrente, o vício do “cachimbo ideológico” acaba por trair o editor de Política (p. A7, ed. 29/03/2015). O entrevistado é Márcio Pochmann, economista, pesquisador e professor da Unicamp (“Crise é ‘momento ótimo’ para Dilma, avalia economista”).
Já no abre, um adjetivo para deixar claro qual o local de fala de Pochmann (tratamento diferenciado ao que foi conferido, na mesma edição, ao economista Mansueto Almeida):
“Com uma visão ‘não negativa’ da situação política atual, o economista petista Márcio Pochmann acredita que os acontecimentos recentes podem levar a presidente Dilma Rousseff ao ‘momento ótimo de uma crise’. Ou seja, a adversidade pode forçar Dilma a reagir com medidas mais arrojadas do que as mostradas até aqui. No linguajar popular, ‘fazer dos limões uma limonada’” (o grifo é meu; leia a íntegra aqui).
Pochmann faz uma análise em retrospectiva histórica para oferecer ao leitor uma possibilidade de reflexão, a partir de crises ocorridas em diferentes momentos da história política recente do país. Em seu entendimento, a “situação política atual do governo pode forçar a presidente a reagir com medidas mais arrojadas” (Fonte cit.). Num box, destacado na primeira parte da entrevista, o professor Márcio Pochmann é apresentado, singelamente, como “presidente da Fundação Perseu Abramo, o braço acadêmico do PT”.
O professor de jornalismo Charles Seife (da Universidade de New York) em sua obra Os números (não) mentem: como a matemática pode ser usada para enganar você nos oferece um bom ponto de partida para refletir sobre o papel da mídia, em sua simbiose com o campo da política. Seife, que é matemático, recorda o célebre discurso do senador estadunidense Joe McCarthy, figura que viria a se tornar símbolo de uma época obscura na história daquele país:
“Em minha opinião, o Departamento de Estado, um dos mais importantes do governo, está totalmente infestado de comunistas. Tenho aqui em minhas mãos uma lista de 205… Uma lista de nomes, que são membros do Partido Comunista”.
“O fato é que McCarthy mentia”, escreve Seife. E complementa:
“O senador não fazia a menor ideia se o Departamento de Estado abrigava 205, 57 ou um só comunista; atirava a esmo e sabia que as informações em que se baseava de nada valiam. Porém, de uma hora para outra, depois de tornar pública a acusação e de o Senado declarar que realizaria audiências sobre o assunto, precisava encontrar alguns nomes. Assim, procurou o magnata da imprensa William Randolph Hearst, anticomunista inflamado, para ajudá-lo a compor uma lista. Como se recorda Hearst: ‘Joe nunca teve nenhuma nome. Ele nos procurou. ‘O que eu vou fazer? Vocês precisam me ajudar’. Então, demos a ele um punhado de bons repórteres’”.
No começo de setembro de 2014, durante o primeiro turno das eleições presidenciais, Márcio Pochmann (representando Dilma Rousseff) debateu com os economistas Alexandre Rands Barros (representando Marina Silva) e Mansueto Facundo de Almeida Junior (representando Aécio Neves). O evento, promovido pela Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil (Anabb), em Brasília, tinha como objeto examinar o modelo de desenvolvimento econômico do país. Pochmann fez uma crítica ao papel da mídia na percepção da situação econômica pelo cidadão comum: “O sujeito analisa suas condições de vida, sua família e amigos mais próximos e diz que está indo bem; mas, quando perguntado sobre a economia do país, não hesita: ‘está muito ruim, com inflação alta, recessão, desemprego, descontrole das contas públicas etc.’.”
E finalizava: “A imprensa produz uma névoa que impede a sociedade de ver a realidade dos fatos em sua dimensão mais complexa”. O momento é de névoa densa e seca, a julgar pelas páginas da FSP e OESP, com previsão de tempestades tropicais no próximo período.
Produzir o conhecimento jornalístico, a partir do fluxo contínuo dos fatos, alimentando a alma democrática da sociedade parece um horizonte utópico, cada dia mais, de jornalistas “românticos” e amantes da profissão. Será arte?
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