Por Mônica Nunes.
O desejo de consumir iogurtes industrializados e a falta de poder aquisitivo criaram uma cadeia de exploração no interior de São Paulo, que envolveu 28 ambulantes, atravessadores (também classificados no processo como traficantes de pessoas) e duas gigantes multinacionais do setor alimentício, a Nestlé e a Danone.
Por isso, as duas foram corresponsabilizadas pela prática de trabalho análogo à escravidão e por não monitorarem suas cadeias de distribuição. A notícia foi divulgada ontem pela ONG Repórter Brasil, num longo e detalhado relato que vale a leitura.
O caso foi descoberto no ano passado, entre março e julho, durante fiscalizações realizadas por auditores do Ministério do Trabalho. A investigação ainda contou com agentes da Polícia Federal.
Desempregados, trabalhadores informais e ambulantes eram “contratados” para vender iogurtes e outros produtos lácteos da Danone e da Nestlé, de porta em porta, por R$ 2.200 por mês. Nada mal para quem ganhava muito menos ou nada. Um deles, chegou a abandonar o trabalho de servente para se dedicar à essa grande oportunidade.
No entanto, rapidamente, a história se mostrou bem diferente e, quem foi cooptado por Francisco Neivan Alves da Silva para esse “trabalho”, se viu em condições precárias de vida: do alojamento ao tratamento, muito parecido com a escravidão: além da exploração financeira, exigia uma jornada exaustiva de cerca de 14 horas de trabalho todos os dias. Silva, que também costumava trazer cearenses de outras cidades do interior paulista com suas promessas enganosas, foi preso em abril pela Polícia Federal de Sorocaba.
Assim, Danone e Nestlé foram corresponsabilizadas pelo crime e pagaram parte das verbas rescisórias dos resgatados, sendo R$ 185.980,24 pela Danone e R$ 139.485,18 pela Nestlé, de acordo com relatório dos auditores do final do ano de 2019. Esses valores certamente têm a ver com a porcentagem de vendas que cabia a cada uma: dos produtos vendidos pelos ambulantes de Silva, 40% era da Danone e 30% da Nestlé. Em alguns casos, os caminhões das duas empresas, descarregavam toneladas de iogurtes diretamente nos galpões dos microdistribuidores, que repassavam para seus representantes, chamados de crediários, como Silva.
Mas é importante destacar que este tipo de ação é corriqueira e envolve uma complexa rede de distribuidores e subdistribuidores nas periferias das grandes cidades e em cidades do interior. O escoamento de produtos com prazos de validade quase vencidos por preços muito atrativos para as classe mais pobres representa cerca de 2% do lucro dessas empresas no país, movimentando milhares de reais. E as vendas ainda podem ser feitas a crédito ou “fiado”, como é mais popular dizer. Pasme!
“Foi uma cegueira deliberada. As empresas lucraram com o esquema fraudulento e foram cúmplices”, disse para a Repórter Brasil, Renato Bignami, auditor-fiscal que participou das fiscalizações”.
Detalhes sórdidos
Nem todos os ambulantes que trabalhavam para Silva dormiam nos alojamentos. Alguns moravam com suas famílias, claro, e se livraram de ambientes precários para a saúde – que poderiam ter infestação de carrapatos, por exemplo – e não tinham toalhas, nem roupas de cama.
Se qualquer um deles precisasse de dinheiro adiantado, poderia pedir para o “patrão”, mas pagaria o dobro por ele. Se faltasse um dia – mesmo por doença -, seria descontado em R$ 100 no “salário”.
Podiam vender “fiado”, mas deveriam anotar tudo na ficha do cliente. Se algum deixava de pagar – e isso era comum – o vendedor tinha que assumir a dívida. Por isso, muitas vezes, no final do mês, nada sobrava. Alguns ambulantes chegavam a vender 70 kit de iogurtes (com 33 unidades), que equivalia a 50 mil reais, num mês e pouco viam de sua comissão. Um deles contou à reportagem que vendeu R$ 500 mil em um ano e ganhou um pacote de Danone para seu filho.
Falta de monitoramento cria cenário perfeito para violações
Como garantem 2% do faturamento, os microdistribuidores têm lugar e nomenclatura especiais nos registros do departamento de vendas de cada empresa. Na Danone são os clientes-consumidor ou spots. Na Nestlé são chamados de BOP, o que seria uma corruptela de “base da pirâmide”.
A grande questão é que essas multinacionais não se preocuparam em fiscalizar esses microdistribuidores para garantir a defesa de direitos fundamentais para qualquer trabalhador envolvido no processo. E as violações aconteceram. Não levaram em conta os acordos internacionais em direitos humanos e do trabalho dos quais o Brasil é signatário, nem os acordos globais assumidos por suas matrizes na França (no caso da Danone) e na Suíça (no caso da Nestlé).
“No exterior, haverá um impacto de reputação muito grande, que pode afetar as operações das empresas. A partir desse impacto de reputação, espera-se que medidas públicas sejam tomadas”, afirmou Tamara Hojaij, pesquisadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getúlio Vargas, para a reportagem da Repórter Brasil.
Não se sabe ha quanto tempo exatamente esse sistema de vendas foi adotado pelas duas empresas, mas, segundo os auditores fiscais do Ministério do Trabalho, o crediário com venda porta-a-porta de produtos quase vencidos existe há quase duas décadas.
Em notas de esclarecimento, tanto Danone como Nestlé disseram que repudiam qualquer forma de trabalho análogo à escravidão e que não pactuam com os métodos praticados por microdistribuidores e colaboradores, identificados na investigação. É o mínimo que qualquer corporação pode fazer. Resta saber o que planejam para impedir que isso aconteça novamente e faça parte de sua cadeia de distribuição.
As respostas das duas empresas, na integra, estão disponíveis neste link.
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Mônica Nunes é jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.