Neoliberalismo, perversidade e o tempo roubado

Foto: Reprodução

Por Mayara Bergamo, para Desacato.info.

Há alguns anos, participei de uma conversa em que meu primo compartilhava uma fórmula para aproveitar o tempo. Foi o pai de uns amigos quem contou. Até hoje tento decifrar essa equação.

Aquele raciocínio me cativou prontamente e pareceu fazer muito sentido! “Se o dia tem 24 horas, você tem 8 horas para dormir, 8 horas para estudar/trabalhar e 8 horas para fazer o que quiser”. Fiquei empolgada, a vida adulta parecia não ser tão perversa quanto eu imaginava.

Em pouco tempo percebi que a conta não fechava. Jamais dormi por oito horas. Em alguns momentos, foram apenas três ou quatro, durante meses. O resto do tempo passava viajando para ir e voltar do trabalho, trabalhando, estudando, pagando contas, indo ao mercado, cozinhando, lavando roupa, limpando e arrumando a casa e por aí vai. É claro que também passava algum tempo nas redes sociais e em sites de notícias, mas nem de longe poderia dizer que eram as tais “8 horas para fazer o que eu quisesse”.

Aliás, parecia que eu não fazia nada, por que não tinha tempo. Lembrei desse assunto porque essa semana revi um pedaço do filme “The Edukators”. Nesse trecho, quatro pessoas conversam sobre o sistema capitalista, o tempo, a acumulação, a exploração e a perversidade, entre outros temas. Não vou falar mais nada sobre o filme, mas vou recomendar que assistam, se ainda não conhecem.

Também nessa semana, aconteceram fatos que fizeram com que eu ficasse refletindo sobre esses dois temas: o tempo e a perversidade. O primeiro deles foi a participação da Manuela D’Ávila, pré-candidata a presidência pelo PCdoB, no programa Roda Viva. Senti vergonha. Não pela Manuela, mas pela bancada extremista e desqualificada que ficou presa no período da Guerra Fria e jamais conseguiu se atualizar.

Manuela é mulher, é jovem e tem conquistas importantes. Está na política há 20 anos, seja como participante e líder de movimento estudantil ou como vereadora, deputada e líder de bancada do seu partido. Disputou diversas eleições e em uma delas, foi a mais votada. Tudo isso significa que, apesar de jovem, ela tem ampla experiência e domínio de assunto quando o tema é política. Mesmo com poucos anos de vida, ela usa o tempo que tem para estudar, construir, propor, disputar, vencer, ser derrotada e tentar novamente. Apesar disso, não teve tempo para falar sobre suas conquistas e propostas.

Manuela foi interrompida 62 vezes pelos entrevistadores do Roda Viva. A ela, foi negado o tempo de resposta, mesmo com ampla vivência no assunto. Ser mulher, jovem, feminista, lutadora e fazer política é, também, disputar o tempo.

Esse ano outra líder política teve seu tempo roubado. Dessa vez, de maneira irrevogável. Marielle Franco, mulher, negra, lésbica, jovem, “cria da Maré”, feminista e lutadora também usou o tempo que teve para estudar, construir, propor, disputar e vencer. Era socióloga, mestre em Administração Pública, foi assessora parlamentar, coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, estava vereadora e presidiu a Comissão da Mulher da Câmara. É lamentável que não tenha outras chances para disputar, propor e vencer novamente. Executaram o tempo que lhe cabia.

Lembrar de Marielle me faz lembrar de outro jovem negro da Maré. Marcus Vinícius da Silva também teve seu tempo roubado na semana passada, aos 14 anos. Marcus Vinícius não teve tempo de estudar nesse dia, já que foi roubado enquanto ia para a escola. O Estado, que deveria proteger Marcus – e que de fato tentava, pelo menos na pauta de Marielle, enquanto uma de suas representantes – foi o responsável por esse roubo.

Segundo a ONU, por dia, 31 crianças e adolescentes têm seus tempos de vida roubados no Brasil. A proporção é essa: nesse país, 7 em cada 10 pessoas assassinadas são negras como Marielle e Marcus. Algumas das propostas de Marielle Franco, assim como as de Manuela, se concentravam justamente nisso: garantir a segurança e um futuro digno para as crianças e adolescentes brasileiros, seja pela criação de políticas públicas direcionadas ao apoio das mães dessas crianças, seja por meio de políticas públicas voltadas às próprias crianças e jovens.

Esse texto começou com uma história pessoal que me faz refletir sobre como gastamos o tempo em um contexto neoliberalista. Mas escrever me obriga a pensar, e isso leva a outros caminhos, indiscutivelmente mais importantes: até quando pretendemos permitir que o tempo das crianças, dos jovens e das mulheres negrxs seja perversamente exterminado? Até quando vamos permitir que as poucas mulheres que representam nossas pautas sejam silenciadas? Até quando vamos aceitar e manter essa baixa representatividade feminina nas estruturas de poder? O que essa complacência diz sobre o nosso comportamento individual?

Mayara Bergamo é fotógrafa e jornalista apaixonada pela cultura popular brasileira e pelo tripé literário formado por Gabriel García Márquez, Eduardo Galeano e Pablo Neruda.

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