Nem súditos nem vassalos, o povo argentino mobilizado. Por Gustavo Veiga.

Com seu decreto real de 82 páginas, Javier Milei deixou o país à mercê de novas invasões, assim como no século XIX, mas no século XXI. Resta saber se serão britânicas, estadunidenses ou de qualquer outro império em declínio.

Por Gustavo Veiga.

Não somos súditos ou vassalos. Somos o povo mobilizado, como em outras ações que brotam de baixo, de nossa história. A de um povo com uma memória que vai além das amnésias momentâneas. Um mal do qual os governantes pusilânimes do poder econômico mais concentrado sempre se aproveitaram.

Mauricio Macri pediu desculpas ao rei da Espanha em 9 de julho de 2016 porque a Argentina havia conquistado a independência 200 anos antes. Dessa vez, o ex-presidente, um cortesão da casta, ajudou a entronizar outro monarca, como se tivéssemos pulado a Revolução de Maio e o Congresso de Tucumán com uma canetada. O mesmo aconteceu com as lutas de emancipação de San Martín e Belgrano.

Com seu decreto real de 82 páginas, Javier Milei deixou o país à mercê de novas invasões, assim como no século XIX, mas no século XXI. Resta saber se elas serão britânicas, estadunidenses ou de qualquer outro império em declínio. Resta saber.

O amante da motosserra pretende primeiro deixar a pátria indefesa. Seu breve mandato até agora é uma farsa. No domingo passado, ele usava roupas verde-oliva quando apareceu na cidade de Bahia Blanca, em pose e trajes de Rambo. Nessa incursão para produzir significado em uma direção (“aqui estou eu como comandante em chefe”), e depois de votar na chapa Ibarra-Macri nas eleições de Boca, ele não anunciou um miserável tostão de ajuda às vítimas da tragédia que causou treze mortes sob ventos fortes de furacão.

Hoje, uma tragédia diferente está se aproximando. Um tsunami econômico, social e político, mas que afetará a vida da grande maioria dos argentinos e argentinas. Até mesmo aqueles que votaram no Rei Mi Ley, como dizia a manchete da primeira página do Página/12. Ele vem na forma de um decreto presidencial (DNU) que varre uma instituição republicana como o Congresso, onde os representantes do povo deliberam.

Nosso futuro, como sempre, estará sujeito à correlação de forças que, em grande parte, é definida nas ruas. As ruas onde, em 1806 e 1807, os soldados de Sua Majestade Britânica receberam litros de água quente jogada das casas de Buenos Aires. Onde as pessoas ganharam e perderam espaço público – como nas ditaduras civis e militares – mas nunca baixaram suas bandeiras de luta.

São tempos muito complicados os que temos pela frente. Com os foguistas que querem nos jogar no fogo das redes sociais.

Por que a extrema direita usa as redes sociais como ferramenta de comunicação indispensável para difundir suas ideias ou desfila em frente aos quartéis, como aconteceu no Brasil durante a tentativa de golpe contra o presidente Lula? Esse é o fenômeno que o historiador italiano Steven Forti chama de extrema direita 2.0 (Siglo XXI, 2021). Ela faz isso porque é basicamente covarde. Ela se refugia no anonimato, nas forças repressivas, nos ataques contra os grupos mais fracos.

Outro autor, o sociólogo português Boaventura de Sousa, argumenta que “a tragédia de nosso tempo é que a dominação está unida e a resistência está fragmentada”. Ele se refere ao fato de que qualquer ideia de pensar o mundo fora do sistema capitalista foi obstruída. Como se o neoliberalismo global estivesse vencendo a guerra cultural que desencadeou contra a humanidade. Não é esse o caso. Eles declararam guerra contra nós, mas ela não está perdida.

O absolutismo do  Antigo Regime retornou. Até mesmo em um período anterior às lutas pela descolonização. Ele nos leva de volta aos séculos XVI, XVII… Ele bastardiza a palavra liberdade e é demonstrado pelo protocolo antipiquete da Ministra da Segurança Patricia Bullrich. Mais uma cortesã da casta que, como o rei, finge nos amordaçar e nos diz por onde andar ou marchar em cada rua.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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