Neiva Moreira, o contador de histórias

Por José Ribamar Freire.

Éramos três amazonenses solitários exilados no Peru nos anos 1970: o titiriteiro Euclides Souza, o antropólogo Felipe Lindoso e este locutor que vos fala. A gente juntava as panelas aos domingos para comer “paiche” (pirarucu) ou “palometa” (pacu), comprados na Casa Charapa, uma biboca que vendia produtos amazônicos no bairro popular de La Victoria, em Lima. Ouvíamos, então, Chico Buarque, Gil, Caetano, Vandré e Martinho da Vila, falávamos mal da ditadura, fazíamos planos de regresso à pátria e – enquanto isso não acontecia – matávamos as saudades culinárias com farinha do Uarini e pimenta murupi que dona Amine mandava de Manaus.
Num desses domingos amazônicos em que sonhávamos com o socialismo, chegou um quarto integrante: o poeta Thiago de Mello, que morava na Alemanha e passou por Lima como um meteoro. Tudo bem: os três mosqueteiros também eram quatro.
Thiago trouxe para o almoço dominical um amigo, exilado, em cuja casa se hospedara: o maranhense Neiva Moreira, recém-chegado do Uruguai, de onde viera para residir em Lima. Foi assim que conhecemos um dos mais divertidos contadores de história.
Neiva, o nova-iorquino, cativou a todos nós, narrando a própria vida. Filho do quitandeiro Tonico e da professora Luzia, ele contou que nascera na data certa: 10 de outubro de 1917, dia da tomada do Palácio do Inverno, na Rússia. Não havia data melhor para um defensor do socialismo moreno. “Fui parido na mesma hora em que a revolução russa” – dizia – “durante os dez dias que abalaram o mundo”. Mas o lugar é que foi errado: uma cidade cujo nome tinha cheiro de imperialismo, Nova Iorque, no interior do Maranhão, divisa com o Piauí, às margens do rio Parnaíba. Tinha até, como sua homônima ianque, a ponte do Brooklyn – uma precária pinguela de madeira ligando Manhatan – a prainha do lago à praia do Caju.
Brinde de lavanda
Entre um pacu e outro, regado a goles de pisco acholado – que ninguém é de ferro – Neiva, que era um bom garfo, nos ofereceu um brinde de lavanda e uma crepe Suzette, que agora compartilho com vocês. Foi assim. De família pobre, depois de atuar como repórter em alguns jornais do Maranhão – O Pacotilha e o Diário do Povo – ele  migrou para o Rio de Janeiro com uma carta para Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, que o contratou imediatamente com o salário mínimo, com o qual mal sobrevivia.
A revista O Cruzeiro, naquele momento, encerrava uma grande campanha para ajudar as vítimas das chuvas e das enchentes que castigavam a região sudeste. Chateaubriand promoveu, então, um senhor banquete no Hotel Glória, homenageando os principais doadores, entre os quais o Seu Manoel, um fazendeiro português do interior de Minas Gerais, que presenteara O Cruzeiro com nada mais nada menos que um helicóptero usado para transportar vítimas e donativos. Por isso, no banquete, ele aterrissou em lugar nobre, sentado ao lado do próprio Chatô.
Os discursos se prolongaram antes da comida. Seu Manoel, homem simples, do campo, não tirava os olhos da tigela de prata que estava à sua frente, na mesa, em um prato sobre uma toalhinha. Dentro dela, água, cheirando a hortelã, com uma rodela de limão e duas pétalas de rosa. Era para lavar as pontas dos dedos, antes de encarar o hors d’oeuvre. O portuga, que desconhecia aquela presepada, não esperou terminarem os discursos para saciar sua sede. Pegou a tigela e gute, gute, bebeu toda a água. Os risinhos dissimulados dos presentes foram cortados por Chateaubriand:
– Está geladinha, Seu Manoel?
Chateaubriand não esperou resposta. Propôs um brinde ao fazendeiro, levantando a sua tigela e bebendo, ele também, a água de lavar os dedos, sendo acompanhado por todos os puxa-sacos presentes, incluindo o Neiva, que não era puxa-saco, mas estava com muita sede e pensou que aquilo era mesmo água de beber, camará.
Quando o garçom passou com o menu, Neiva, na maior pindaíba, com uma fome nordestina, de retirante, leu e não entendeu bulhufas. Só tinha pratos franceses. Ficou na moita. O cidadão, sentando à sua direita, com um ar de entendido, pediu uma “bouillabaisse” de Marselha. Sem saber que diabo era aquilo, Neiva confiou:
– Pra mim, o mesmo.
Logo depois, serviram-lhe uma sopa de peixe, que não era tão deliciosa como a caldeirada de camarão com pirão da Base do Germano, nem tinha o refinamento do arroz-de-cuxá, mas “deu pra quebrar o galho ” – admitiu Neiva, reconhecendo que seu vizinho à mesa tinha gosto apurado.
Veio a hora da sobremesa. Outro menu complicado. Neiva procura um doce de bacuri ou de buriti, uma compota de jaca, um não-me-toques, uma mãe benta, um quindim de iaiá, um papo-de-anjo, uma baba de moça ou uma reles cocada. Necas de pitibiribas! A lista era ameaçadora, cheia de nomes intraduzíveis, que não davam sequer para suspeitar do que se tratava: mille-feuilles, clafoutis, petit gâteau, madeleine, bûche de Noel, creme brûlée, profiteroles. Ele esperou que o vizinho sentado à sua direita escolhesse, para imitá-lo. Mas o cara era diabético e declinou, da mesma forma que o vizinho da esquerda.
Crepe Suzette
Desamparado, não querendo perder a boca livre, Neiva percorreu outra vez a lista e se deteve sobre algo que lhe pareceu familiar e pronunciável. Audacioso, pediu:
– Crepe Suzette!
E justificou para nós, que ouvíamos sua história:
– Nunca havia visto aquele nome. De qualquer forma, crepe é crepe em qualquer lugar do mundo, tem crepe até de tapioca. E Suzete era o nome de uma tia minha que morava em Tirirical.
Serviram a sobremesa para todo mundo, e nada de chegar o pedido do Neiva. No final, mais discursos. Finalmente, aos 45 minutos do segundo tempo, sai da cozinha o chef, todo de branco, avental, dólmã de manga longa branca, chapelão viscoso, luvas, ladeado por dois acólitos – um copeiro e um ajudante de cozinha, igualmente paramentados. Os três empurram um enorme carrinho, lentamente, como se fosse um andor, numa procissão, em direção a Neiva, que ficou gelado. O orador calou, o salão todo parou para acompanhar o ritual.
– Foi o senhor que pediu Crepe Suzette? – perguntou o chef, num tom intimidante, de policial fazendo interrogatório, que soava quase como uma acusação. Neiva, já arrependido, não tinha como negar. Confessou a culpa, gemendo:
– Foi.
O final foi apoteótico. O chef, ajudado pelos acólitos, dobrou a massa em quatro, misturou licores diversos com perfume de sumo de tangerina e de raspa de laranja amarga, regou tudo com um cálice de cointreau, acendeu um fósforo e incendiou o prato fazendo um pequeno estrondo: bum! A massa murchou, encolheu, ficou uma titicazinha de nada. Serviram aquilo em chamas. Era fogo de palha. Tinha mais pompa no nome do que no prato.
– Qual era o gosto, Neiva?
– Rapaz, a quantidade era tão insignificante que nem deu para sentir.
As histórias contadas por Neiva Moreira faziam a gente se dobrar de rir. Quem teve o privilégio de ouvi-lo, sabe disso. Ele narrava sua entrevista com o então presidente do Peru, Juan Velasco Alvarado, um general diferente, simpático, nacionalista, que adorava falar palavrões. Neiva o imitava com perfeição,  contrapondo-o ao general de De Gaulle, na França, cujas entrevistas coletivas eram exatamente o oposto.
Quando foi lançado em Lima o livro de Neiva Moreira sobre o modelo peruano, o Diretório Acadêmico da centenária Universidad Nacional Mayor de San Marcos o convidou para uma noite de autógrafos e palestra. Os estudantes estavam divididos em dezenas de facções e tendências. As duas mais importantes eram dissidências maoistas que viviam se digladiando, numa disputa acirrada pelo controle da associação estudantil: Bandera Roja, de um lado, e Pátria Roja, de outro.
Na véspera, os autores do convite, que eram bandeiristas, procuraram Neiva para combinarem como seria feito sua segurança. – Segurança pra quê? – ele perguntou. “Nosostros, cuando invitamos, garantizamos la integridad física del invitado. No somos como la gente de Pátria Roja”– lhe disseram. Contaram que o ex-guerrilheiro Héctor Bejar no mês anterior havia levado uma surra, porque o público discordara do conteúdo de sua palestra.
Neiva nos contou que se escafedeu e declinou do convite, seguindo seu instinto de sobrevivência. Suas histórias sobre Heber Maranhão, um engenheiro, também exilado, que foi dirigente da Rede Ferroviária Federal no governo Jango, são deliciosas, especialmente a transformação de Heber em um dos maiores especialistas em PERT, uma técnica de gestão e controle de projetos. Mas meu espaço terminou. Fica para outra vez.
Na madrugada do dia 10 de maio de 2012, aos 94 anos, morreu em São Luis o jornalista e ex-deputado Neiva Moreira, que assessorou o ex-governador Jackson Lago na luta contra a podridão dos Sarney. A presidenta Dilma Rousseff, em nota oficial, falando em nome de todos os brasileiros, lembrou que ele foi um dos fundadores do PDT e que a política brasileira perdeu “um de seus mais expressivos líderes”.
Com ele, perdemos, um certo modo decente de fazer política e, sobretudo, um jeito de contar histórias, que nos divertia com seus ‘causos’, com absoluto domínio de palco, muito fair play e manejo das técnicas narrativas. Que descanse em paz!
Na foto: Neiva Moreira, Serra, Jackson e Vidigal.

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